O COMENTÁRIO DE LETÍCIA SABATELLA FOI PIOR DO QUE A BEBEDEIRA.
Ainda vai dar muito o que falar por aí o episódio de Letícia Sabatella, mas ele mostra como, apesar do aparente apoio a qualquer atitude "provocativa" ou "escandalosa", uma geração de intelectuais, artistas e famosos começa a viver uma crise de valores, pela falta de noção do que é mesmo liberdade.
Numa sociedade complexa como a nossa, liberdade não é necessariamente ser livre e ponto final. E, sobretudo no contexto do Sul e Sudeste em que se misturam e intercalam atitudes autoritárias - como os projetos de transporte coletivo lançados em diversas capitais, em que se impõe até a pintura padronizada às empresas e trabalho opressivo aos rodoviários - e outras libertinas.
Daí o eixo Rio-São Paulo viver um cenário um tanto esquizofrênico da liberdade excessiva e da submissão ao "sistema". Uma "liberdade" que não rompe com o "estabelecido", antes fosse uma reafirmação do mesmo. Uma "liberdade" neoliberal que se supõe "socialista", uma "democracia" que não raro atropela direitos e promove abusos e imprudências mesmo sem querer.
O caso de Letícia Sabatella é mais um dos inúmeros que apontam a crise de um estado de espírito que contagia intelectuais, artistas e acadêmicos. A noção que eles têm de "liberdade", herdada de leituras hoje mofadas do ideário pós-tropicalista - quando o Tropicalismo, de combativo virou "estabelecido" a partir de 1977 - , encontrou seu canto de cisne na bela atriz e ativista social.
PRECONCEITOS DOS "SEM PRECONCEITOS"
Defendendo a bregalização, a embriaguez, a farra, a curtição como um fim em si mesmo, essa geração "sem preconceitos" mostra seus claros preconceitos. A própria ideia de que a embriaguez faz Letícia se sentir "gente como a gente" mostra o quanto negativa é a visão que essas elites possuem das pessoas comuns e das classes populares.
Quando eu fazia o Mingau de Aço, eu já questionava a visão dessas pessoas sobre cultura popular. O lance era que esses intelectuais, acadêmicos e famosos, de atores a cineastas, de jornalistas a antropólogos, pareciam tirar de letra a visão mais transparente e autêntica de cultura popular, como se eles mais entendessem de cultura do povo pobre do que o próprio povo pobre.
Tive um trabalho para questionar essas pessoas, porque eu não tinha 1% da visibilidade e do prestígio desse pessoal, que batia ponto na mídia progressista para seduzir seus ativistas a não defender melhorias na cultura brasileira. Aliás, a cultura brasileira estava morta, seu legado virou artigo de museu e o que valia mesmo era a tal "cultura transbrasileira".
Esse pessoal se julgava "despido de qualquer tipo de preconceito". Mas era dotado dos mais terríveis e assustadores preconceitos sobre as classes populares, já que só gostavam do povo pobre quando ele se comportava de forma subserviente às leis de mercado e à domesticação sócio-cultural.
Daí a defesa dos ídolos cafonas, do "funk", do "sertanejo". Daí a defesa das baixarias "populares", como se fossem "provocativas". Daí transformarem o "mau gosto" na sua bandeira de luta, daí acharem que a libertinagem era tudo na vida, ainda que se sacrificasse a ética ou mesmo a saúde.
Um país mais brega, mais drogado, mais promíscuo, mais emporcalhado, vivendo só de "provocar" as pessoas, nada tem a ver com os projetos progressistas que essa intelectualidade fingia sentir simpatia. Com toda a simpatia que tinham com os ativistas do Centro Barão de Itararé, eles desprezavam completamente a regulação democrática da mídia.
Eles não querem cidadania nem qualidade de vida. Querem permissividade. E, adotando uma visão de "liberdade" de 45 anos atrás, sem perceber os malefícios que os impulsos instintivos trazem, com direitos de uns atropelando os direitos dos outros.
PRIMEIRO MUNDO EM CRISE
No Primeiro Mundo, que celebrou há poucos dias a queda do Muro de Berlim, há muito existe uma crise existencial, uma cultura que, no cinema, reflete não mais os sonhos e devaneios dos anos 1950 e 1960, mas os pesadelos dos anos 1990 até agora. Os EUA, o Reino Unido e a França viveram tragédias individuais ou coletivas por conta dessa "liberdade" desmedida e imprudente.
Aqui no Brasil há a "liberdade" da incoerência, da estupidez, da pornografia, da imprudência, que faz muitos internautas desrespeitarem os outros ao mesmo tempo em que exigem respeito a si mesmos. E esse padrão de país começa a desmoronar, apesar de muitos protestos.
Nos EUA, a "ressaca" já rendeu da chacina da Família Manson em 1969 à chacina da escola de Columbine, três décadas depois. Ídolos morreram por causa das drogas e dos efeitos do álcool, da nicotina e da promiscuidade sexual. Uma surpreendente maioria de astros da disco music faleceu com uma relativa rapidez que não se imaginava sequer no rock.
Mas como o Brasil é um país estigmatizado pela "inocência" e "cordialidade", as pessoas ainda se julgam invulneráveis. Defendem a "liberdade de tudo", mas condenam a liberdade dos outros. Se um nerd reclama, por exemplo, que só consegue atrair uma mulher estúpida, ele é ridicularizado, porque, para a "galera tudo de bom", "potranca dada não se olha os dentes".
Há a pretensão de querer ser tudo, querer ser moderno e livre, sem considerar limites, nem princípios, nem contextos. E isso é que está destruindo uma geração de intelectuais, artistas e acadêmicos, que não conseguem reabilitar os bregalhões que tanto exaltam em chorosos artigos, monografias ou documentários, precisando do apoio dos barões da mídia para chegar próximo a esse fim.
Essa noção de "liberdade", que se julga sem preconceitos, uma palavra que só virou moda quando os adeptos da bregalização tomaram o termo emprestado dos jargões usados pela imprensa nas coberturas do apartheid na África do Sul, no entanto encontra seus próprios preconceitos, muito mais cruéis e injustos do que aqueles que seus partidários dizem romper.
A "LIVRE CULTURA" DO BREGA NÃO É LIVRE
A "livre cultura popular" do brega-popularesco, que se baseia na domesticação das classes populares e numa colonização cultural sutil patrocinada pelos barões da grande mídia que, diante de alegações falsamente modernistas (deturpando principalmente os conceitos de antropofagia cultural de Oswald de Andrade), se define como "cultura transbrasileira", nada tem de livre.
Esse caráter não-livre tanto é verdadeiro que o que se vê não são grandes artistas populares, mas meramente um tradução ao mesmo tempo tosca, caipira, mofada, caricata e bairrista do pop estrangeiro, mal traduzido em contextos estereotipados brasileiros - eventualmente emulando ritmos nacionais de maneira superficial e malfeita - e situado em contextos mercantilistas.
O que existe são fetiches de ídolos ao mesmo tempo bem-sucedidos comercialmente, mas tomados de puro "coitadismo", posando de "vítimas de preconceitos", chorando porque não são levados a sério, mas ingratos com o sucesso que puderam conquistar.
Muitos desses "artistas populares" são controlados por empresários, patrocinados pelos barões da grande mídia e eventualmente financiados até pelos latifundiários e banqueiros do jogo-do-bicho. Daí a contradição gritante que acabam causando esses ídolos do brega-popularesco tão elogiados pela nossa intelligentzia e pelos famosos solidários.
Eles evocam valores retrógrados dando a falsa impressão de que estão combatendo os mesmos. As "musas" do "funk" forjam falso feminismo se valendo de valores machistas e da imagem que o machismo impõe à mulher. O "pagodão" baiano evoca uma falsa negritude baseada em imagens caricatas do negro baiano, visto como "retardado" e "tarado".
As próprias elites intelectuais e os famosos que lhes respaldam criam uma série de contradições: defendem a ética e a sobriedade, mas mergulham nas drogas e no álcool com gosto. Defendem a causa LGBT não para facilitar escolhas amorosas, mas para permitir tão somente a promiscuidade sexual nas festas e badalações, sem levar "dura" da polícia.
O que se observa é que essa intelectualidade não quer melhorar o país. E ela, em parte, estragou o projeto reformista do PT, ao lado de partidos fisiológicos (PMDB incluído) ou do apoio tendencioso de antigos rivais como Collor e Maluf. Graças a eles, o Brasil está longe de ser um país realmente progressista.
A intelectualidade e os famosos "bacanas" só querem a "liberdade do estabelecido", o que é, em si, uma enorme contradição. Avessos às regras, eles impõem suas próprias regras. Querem a liberdade de mercado, de consumo de mercadorias, drogas, emoções baratas, enquanto outras liberdades são vetadas ou subestimadas.
Infelizmente, será preciso que os "bacanas" brasileiros tenham que encarar as tragédias que há muito atingiram seus semelhantes na Europa e nos EUA para que pudessem entender as críticas negativas recebidas.
Ainda vai dar muito o que falar por aí o episódio de Letícia Sabatella, mas ele mostra como, apesar do aparente apoio a qualquer atitude "provocativa" ou "escandalosa", uma geração de intelectuais, artistas e famosos começa a viver uma crise de valores, pela falta de noção do que é mesmo liberdade.
Numa sociedade complexa como a nossa, liberdade não é necessariamente ser livre e ponto final. E, sobretudo no contexto do Sul e Sudeste em que se misturam e intercalam atitudes autoritárias - como os projetos de transporte coletivo lançados em diversas capitais, em que se impõe até a pintura padronizada às empresas e trabalho opressivo aos rodoviários - e outras libertinas.
Daí o eixo Rio-São Paulo viver um cenário um tanto esquizofrênico da liberdade excessiva e da submissão ao "sistema". Uma "liberdade" que não rompe com o "estabelecido", antes fosse uma reafirmação do mesmo. Uma "liberdade" neoliberal que se supõe "socialista", uma "democracia" que não raro atropela direitos e promove abusos e imprudências mesmo sem querer.
O caso de Letícia Sabatella é mais um dos inúmeros que apontam a crise de um estado de espírito que contagia intelectuais, artistas e acadêmicos. A noção que eles têm de "liberdade", herdada de leituras hoje mofadas do ideário pós-tropicalista - quando o Tropicalismo, de combativo virou "estabelecido" a partir de 1977 - , encontrou seu canto de cisne na bela atriz e ativista social.
PRECONCEITOS DOS "SEM PRECONCEITOS"
Defendendo a bregalização, a embriaguez, a farra, a curtição como um fim em si mesmo, essa geração "sem preconceitos" mostra seus claros preconceitos. A própria ideia de que a embriaguez faz Letícia se sentir "gente como a gente" mostra o quanto negativa é a visão que essas elites possuem das pessoas comuns e das classes populares.
Quando eu fazia o Mingau de Aço, eu já questionava a visão dessas pessoas sobre cultura popular. O lance era que esses intelectuais, acadêmicos e famosos, de atores a cineastas, de jornalistas a antropólogos, pareciam tirar de letra a visão mais transparente e autêntica de cultura popular, como se eles mais entendessem de cultura do povo pobre do que o próprio povo pobre.
Tive um trabalho para questionar essas pessoas, porque eu não tinha 1% da visibilidade e do prestígio desse pessoal, que batia ponto na mídia progressista para seduzir seus ativistas a não defender melhorias na cultura brasileira. Aliás, a cultura brasileira estava morta, seu legado virou artigo de museu e o que valia mesmo era a tal "cultura transbrasileira".
Esse pessoal se julgava "despido de qualquer tipo de preconceito". Mas era dotado dos mais terríveis e assustadores preconceitos sobre as classes populares, já que só gostavam do povo pobre quando ele se comportava de forma subserviente às leis de mercado e à domesticação sócio-cultural.
Daí a defesa dos ídolos cafonas, do "funk", do "sertanejo". Daí a defesa das baixarias "populares", como se fossem "provocativas". Daí transformarem o "mau gosto" na sua bandeira de luta, daí acharem que a libertinagem era tudo na vida, ainda que se sacrificasse a ética ou mesmo a saúde.
Um país mais brega, mais drogado, mais promíscuo, mais emporcalhado, vivendo só de "provocar" as pessoas, nada tem a ver com os projetos progressistas que essa intelectualidade fingia sentir simpatia. Com toda a simpatia que tinham com os ativistas do Centro Barão de Itararé, eles desprezavam completamente a regulação democrática da mídia.
Eles não querem cidadania nem qualidade de vida. Querem permissividade. E, adotando uma visão de "liberdade" de 45 anos atrás, sem perceber os malefícios que os impulsos instintivos trazem, com direitos de uns atropelando os direitos dos outros.
PRIMEIRO MUNDO EM CRISE
No Primeiro Mundo, que celebrou há poucos dias a queda do Muro de Berlim, há muito existe uma crise existencial, uma cultura que, no cinema, reflete não mais os sonhos e devaneios dos anos 1950 e 1960, mas os pesadelos dos anos 1990 até agora. Os EUA, o Reino Unido e a França viveram tragédias individuais ou coletivas por conta dessa "liberdade" desmedida e imprudente.
Aqui no Brasil há a "liberdade" da incoerência, da estupidez, da pornografia, da imprudência, que faz muitos internautas desrespeitarem os outros ao mesmo tempo em que exigem respeito a si mesmos. E esse padrão de país começa a desmoronar, apesar de muitos protestos.
Nos EUA, a "ressaca" já rendeu da chacina da Família Manson em 1969 à chacina da escola de Columbine, três décadas depois. Ídolos morreram por causa das drogas e dos efeitos do álcool, da nicotina e da promiscuidade sexual. Uma surpreendente maioria de astros da disco music faleceu com uma relativa rapidez que não se imaginava sequer no rock.
Mas como o Brasil é um país estigmatizado pela "inocência" e "cordialidade", as pessoas ainda se julgam invulneráveis. Defendem a "liberdade de tudo", mas condenam a liberdade dos outros. Se um nerd reclama, por exemplo, que só consegue atrair uma mulher estúpida, ele é ridicularizado, porque, para a "galera tudo de bom", "potranca dada não se olha os dentes".
Há a pretensão de querer ser tudo, querer ser moderno e livre, sem considerar limites, nem princípios, nem contextos. E isso é que está destruindo uma geração de intelectuais, artistas e acadêmicos, que não conseguem reabilitar os bregalhões que tanto exaltam em chorosos artigos, monografias ou documentários, precisando do apoio dos barões da mídia para chegar próximo a esse fim.
Essa noção de "liberdade", que se julga sem preconceitos, uma palavra que só virou moda quando os adeptos da bregalização tomaram o termo emprestado dos jargões usados pela imprensa nas coberturas do apartheid na África do Sul, no entanto encontra seus próprios preconceitos, muito mais cruéis e injustos do que aqueles que seus partidários dizem romper.
A "LIVRE CULTURA" DO BREGA NÃO É LIVRE
A "livre cultura popular" do brega-popularesco, que se baseia na domesticação das classes populares e numa colonização cultural sutil patrocinada pelos barões da grande mídia que, diante de alegações falsamente modernistas (deturpando principalmente os conceitos de antropofagia cultural de Oswald de Andrade), se define como "cultura transbrasileira", nada tem de livre.
Esse caráter não-livre tanto é verdadeiro que o que se vê não são grandes artistas populares, mas meramente um tradução ao mesmo tempo tosca, caipira, mofada, caricata e bairrista do pop estrangeiro, mal traduzido em contextos estereotipados brasileiros - eventualmente emulando ritmos nacionais de maneira superficial e malfeita - e situado em contextos mercantilistas.
O que existe são fetiches de ídolos ao mesmo tempo bem-sucedidos comercialmente, mas tomados de puro "coitadismo", posando de "vítimas de preconceitos", chorando porque não são levados a sério, mas ingratos com o sucesso que puderam conquistar.
Muitos desses "artistas populares" são controlados por empresários, patrocinados pelos barões da grande mídia e eventualmente financiados até pelos latifundiários e banqueiros do jogo-do-bicho. Daí a contradição gritante que acabam causando esses ídolos do brega-popularesco tão elogiados pela nossa intelligentzia e pelos famosos solidários.
Eles evocam valores retrógrados dando a falsa impressão de que estão combatendo os mesmos. As "musas" do "funk" forjam falso feminismo se valendo de valores machistas e da imagem que o machismo impõe à mulher. O "pagodão" baiano evoca uma falsa negritude baseada em imagens caricatas do negro baiano, visto como "retardado" e "tarado".
As próprias elites intelectuais e os famosos que lhes respaldam criam uma série de contradições: defendem a ética e a sobriedade, mas mergulham nas drogas e no álcool com gosto. Defendem a causa LGBT não para facilitar escolhas amorosas, mas para permitir tão somente a promiscuidade sexual nas festas e badalações, sem levar "dura" da polícia.
O que se observa é que essa intelectualidade não quer melhorar o país. E ela, em parte, estragou o projeto reformista do PT, ao lado de partidos fisiológicos (PMDB incluído) ou do apoio tendencioso de antigos rivais como Collor e Maluf. Graças a eles, o Brasil está longe de ser um país realmente progressista.
A intelectualidade e os famosos "bacanas" só querem a "liberdade do estabelecido", o que é, em si, uma enorme contradição. Avessos às regras, eles impõem suas próprias regras. Querem a liberdade de mercado, de consumo de mercadorias, drogas, emoções baratas, enquanto outras liberdades são vetadas ou subestimadas.
Infelizmente, será preciso que os "bacanas" brasileiros tenham que encarar as tragédias que há muito atingiram seus semelhantes na Europa e nos EUA para que pudessem entender as críticas negativas recebidas.
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