Em um só tempo, Lula personifica alguém próximo ao João Goulart da fase parlamentarista e ao João Goulart do discurso da Central do Brasil (Rio de Janeiro).
Se alia a forças divergentes ao seu projeto político e, ao mesmo tempo, quer realizar ousadias no seu governo.
Dependendo do público, Lula adota um tom mais "moderado" ou um tom mais "audacioso".
Ontem ele fez uma entrevista coletiva para vários canais da mídia independente, incluindo os veículos conhecidos Brasil 247, Diário do Centro do Mundo e Brasil de Fato, além de influenciadores digitais progressistas.
Nesse encontro virtual, Lula reafirmou seus desejos profundamente progressistas, dos quais muita coisa tem a discordância de seus aliados da direita moderada.
Lula afirmou que reconhece que a realidade do Brasil está pior que a de 2003 e que ele "terá muito trabalho" para reconstruir o Brasil.
Ele criticou o teto de gastos públicos, que afirmou servir para o ganho dos banqueiros no fim de ano.
Lula também falou em pautas de sempre: recuperar os direitos dos trabalhadores, criar políticas para beneficiar mulheres, jovens e negros, indios e mestiços.
O presidenciável também falou em propor "efervescência da cultura", reafirmando seu desejo de ressuscitar o Ministério da Cultura e dar a ele uma força maior de atuação.
Lula viu o assunto da cultura pelo viés econômico, levando em conta a geração de empregos como ênfase de seu plano de governo.
Um grande erro que Lula cometeu foi quanto aos evangélicos, não pelo fato dele acolher as religiões, o que é salutar na sua política, pois a maioria do povo brasileiro é religiosa.
O erro consistiu em Lula forçar a barra e dizer que Jair Bolsonaro "não acredita em Deus", o que sugere uma associação entre o bolsonarismo e o ateísmo, ofendendo assim aqueles que não se sentem inclinados à crença no "papai do céu".
É até direito de Lula acolher os evangélicos, que podem somar muitos votos para o petista. E, neste sentido, há a vantagem de que boa parte da classe trabalhadora é evangélica, o que pode trazer benefício para a campanha do candidato do PT.
Lula afirmou também o seu desejo maior em transformar o Brasil e disse que sua candidatura reflete um movimento de restabelecimento da democracia.
Tudo bem intencionado, é verdade. Da parte de Lula, o Brasil poderia progredir, mesmo, se não fossem os problemas acumulados depois de 2016.
O maior erro é Lula se aliar aos que foram os mentores do golpe político de 2016.
Esses novos aliados têm uma trajetória de defesa do Estado mínimo e colaboraram para a precarização do trabalho, prejudicando a maioria do povo brasileiro.
Há a notícia de que Geraldo Alckmin irá dividir, com Lula, a coordenação-geral da campanha presidencial.
Alckmin até agora não abriu o jogo, não expôs com suas próprias palavras se realmente mudou ou não, e talvez fosse ele que tivesse uma entrevista coletiva com a mídia progressista, pois Lula já havia feito uma entrevista antes, na sua pré-campanha.
O que Lula não percebe é que o diálogo que ele pretende propor com os vários segmentos da sociedade está fortemente sujeito a conflitos violentos de interesses. E não se fala do conflito entre PT e bolsonaristas, que é chover no molhado.
Fala-se, na verdade, dos conflitos internos. Lula se esquece que o tucanato raiz (a partir de Fernando Henrique Cardoso), do qual veio Alckmin, e o MDB de gente como José Sarney, Romero Jucá e Geddel Vieira Lima, articulou o golpe político e os retrocessos promovidos por Michel Temer.
Esses novos aliados não vão aceitar uma grande parte das pautas de Lula.
Revogar a reforma trabalhista e o teto de gastos e taxar grandes fortunas, propostas incluídas ontem, oficialmente, no programa da Federação Partidária do PT, PC do B e PV, são rejeitadas pelos aliados da direita moderada.
Geraldo Alckmin prefere a revisão da reforma trabalhista, aproveitando "pontos positivos". E seu apoio à taxação de grandes fortunas é da boca para fora, pois discorda da proposta. E, além disso, Alckmin apenas defende mudanças no teto de gastos.
Há uma corrente na política brasileira, voltada ao mais convicto neoliberalismo, que trata o teto de gastos como se fosse uma forma de disciplinar os investimentos do poder público.
Lula acredita ser possível um diálogo "democrático" entre trabalhadores e empresários, cujos acordos serão intermediados pelo vice-presidente Alckmin, representante dos interesses empresariais.
Neoliberais como FHC, Alckmin, Armínio Fraga, Abílio Diniz e José Sarney posam agora de "bonzinhos", parecendo que passaram a acolher incondicionalmente as pautas progressistas de Lula.
Mas isso é uma ilusão, e aí vemos o quanto será problemático o projeto político de Lula, que, além de ter muito trabalho para recuperar o que foi destruído nos últimos anos, vai enfrentar muita puxada de tapete dos próprios parceiros.
O próprio Alckmin, que já teve uma experiência como "privatista doente" quando foi governador de São Paulo, não iria aceitar de bom grado o cancelamento das privatizações da Eletrobras, dos Correios e do que resta da Petrobras.
Como Lula vai fazer o que ele define como "50 anos em 4"?
Muito do que ele deseja fazer encontrará resistência nos aliados do chamado "centro", eufemismo para a direita moderada que integra a frente ampla demais.
Esse será o grande problema, e aí voltamos à comparação inicial.
Lula, simultaneamente, quer ser o João Goulart da fase parlamentarista, com Geraldo Alckmin no papel do primeiro-ministro Tancredo Neves, e, por outro lado, quer ser o Jango do comício da Central, prometendo grandes ousadias à esquerda para o seu governo.
A História do Brasil das últimas décadas mostrou que isso não ocorre sem conflitos nem impasses. Vide Getúlio Vargas, o próprio Jango e, recentemente, Dilma Rousseff.
E o Brasil, de tão destruído e posto no caminho da distopia, dificilmente viverá um ritmo de cinquenta anos de recuperação num prazo de quatro anos. Nem a floresta amazônica tem esse tempo para retomar a sua antiga estrutura.
Lula quer um ritmo acelerado de melhorias e desenvolvimento, mas encontrará sérias barreiras, no contexto do Brasil arrasado de hoje.
Boa parte da direita moderada contribuiu para a ascensão de Bolsonaro. Se não o apoiou abertamente, deixou o extremo-direitista ser eleito.
Hoje o golpismo político foi todo posto na conta de nomes menos expressivos, como Sergio Moro, Deltan Dallagnol, Eduardo Cunha, Janaína Paschoal e Kim Kataguiri.
Mas lembremos que boa parte dos "novos amigos de infância" de Lula fizeram a parte intelectual deste golpismo, engrandecendo Moro, fortalecendo Bolsonaro e permitindo a aprovação de retrocessos trabalhistas nocivos ao povo brasileiro.
Deixaram o Museu Nacional ser destruído pelo incêndio, deixaram Mariana e Brumadinho sofrerem um trágico desastre ambiental, e deixaram que perdêssemos boa parte da flora e da fauna na Amazônia e no Pantanal.
Agora todos são bonzinhos. Mas até que ponto? Os neoliberais que hoje estão com Lula vão ficar sorrindo feito tolos enquanto o petista descreve seus desejos audaciosos de governo? Não.
Pode ser que o bolsonarismo está fora das mentes desses neoliberais, mas o neoliberalismo continua muito, muito forte.
Comentários
Postar um comentário