Não existe a menor dúvida que se deve priorizar a alimentação do povo brasileiro. Isso nem se discute.
Mas, da forma como se faz o discurso contra a fome, enfatizar demais o tema pode dar margem a um equivocado idealismo romântico, que só prejudica a causa do combate à fome.
Lula, que agora sente o desgaste da euforia precipitada do clima do "já ganhou", está cometendo inúmeros erros e falar sobre a fome acaba se tornando uma retórica vazia, que mais parece vinda de alguém sem um programa político consistente.
Isso porque Lula até tinha um programa político consistente, até se aliar com a direita moderada.
E agora, com o lado técnico do projeto político de Lula nas mãos dos neoliberais, representados a partir do seu vice Geraldo Alckmin, resta ao petista falar em temas abstratos como a fome.
E ele fez isso com um comentário infeliz, publicado no seu perfil nas redes sociais:
"Eu sei o que é uma pessoa levantar cedo de manhã e não ter um pão para comer. O preço de tudo está subindo demais. Garantir comida na mesa do povo é o principal. Qualquer outra coisa pode esperar uma semana, a fome não! Força para todos e boa semana".
Não que ele estivesse errado em falar sobre fome, mas a forma como ele disse mostra um certo tendenciosismo em abafar o vazio de suas propostas, já que seus novos aliados irão barrar, com a certeza do nascer e do pôr do Sol, o projeto político original do petista.
Em primeiro lugar, a fome não é a raiz do problema. Ela é fruto de uma série de problemas relacionados. Até porque a fome, por si só, é acessível até aos mais ricos, bastando eles não comerem.
Esses problemas são relacionados ao Trabalho, à Economia, à Educação e outros aspectos da vida humana, que são afetados pelo sistema de valores injusto e desigual, que é o que deixa muita gente condenada ao cotidiano trágico da fome e da miséria.
A parte infeliz do comentário está na frase: "Qualquer outra coisa pode esperar uma semana".
Como assim? É certo que a fome não espera, mas dizer isso é de uma precariedade de ideias terrível!
Na verdade, não se pode dizer isso.
Como a fome está relacionada ao desemprego, ao analfabetismo, à falta de desenvolvimento industrial e outras coisas, Lula foi muito infeliz ao dizer que "qualquer outra coisa pode esperar".
Fica parecendo que Lula promete ser um distribuidor de marmitas, porque as "quaisquer outras coisas" ficarão nas mãos dos tecnocratas ligados a Alckmin e ao "empresariado sério" que hoje apoia o petista.
Falando apenas sobre a fome, Lula sinaliza que se rendeu aos neoliberais, já que prefere fazer uma retórica romantizada sobre a pobreza, em vez de falar em ideias mais objetivas e técnicas de como tirar o Brasil da crise, já que esta tarefa acabará caindo nas mãos da direita que agora o apoia.
Lula está cometendo erros e contradições preocupantes, e se considerarmos a suposta pesquisa eleitoral do XP/Ipespe, o petista já começa a sentir o gosto da derrota.
Segundo os dados divulgados, Bolsonaro cresceu de 26% a 30%, ganhando os votos de Sérgio Moro, que desistiu da corrida presidencial. Lula, que ostentava pontos de 52% a 58% meses atrás, ficou com 34%.
Este é o impacto negativo da aliança com Geraldo Alckmin, que até agora não deu uma explicação sincera sobre sua suposta mudança política e partidária.
E ontem Lula anunciou que vai ampliar a "frente ampla", que já está inchada de nomes alienígenas, relacionados ao golpe político de 2016 e à prisão e interdição eleitoral do próprio petista em 2018.
Lula também falou com José Sarney e articula para conquistar o apoio do MDB, fazendo este partido desistir de designar a terceira-viável Simone Tebet a concorrer à Presidência da República.
Para complicar as coisas, as articulações políticas na França, que agora tem o neoliberal Emmanuel Macron e a fascista Marine Le Pen disputando a presidência em segundo turno, podem ainda reforçar a frente ampla demais de Lula.
Isso porque, na França, a esquerda e a direita moderada articulam uma frente ampla para derrotar Le Pen na corrida presidencial, evitando que o povo francês fosse governado pela extrema-direita.
Mas aqui no Brasil o contexto é outro, e Lula até poderia articular alianças fora da esquerda, desde que fosse apenas com políticos convergentes às ideias progressistas.
Só que não. Lula prefere articular alianças com políticos divergentes a ponto de estar indiferente aos apelos de seus colegas na "esquerda do PT".
E aí vemos o quanto Lula está cansando e começando a derreter no seu favoritismo político.
É claro que muita coisa ainda está por vir, a finalização dos processos de articulação de candidatura e chapa presidencial, o congresso do PT, e por aí vai.
Mas o clima de "já ganhou" de Lula já queimou muita munição, enquanto, por outro lado, Bolsonaro retoma fôlego nas redes sociais, o que é um grande perigo para o país.
Só que não será Lula se aliando aos mesmos que quiseram sua prisão e seu banimento político em 2018 que irá resolver o problema.
Eles vão barrar o projeto progressista. Geraldo Alckmin tem uma tradição de conduta privatista, entreguista e sem dedicação positiva às questões sociais.
Lula acredita que, ao aumentar a base de apoio, será vencedor ao acolher os votos da Terceira Via.
Grande engano. Ridicularizar e enfraquecer a Terceira Via acaba evitando o efeito benéfico da diversidade competitiva que poderia até mesmo pulverizar os votos de Jair Bolsonaro.
Com Lula novamente ao lado de Geraldo Alckmin, José Sarney, Romero Jucá, Geddel Vieira Lima e outros, reascende a histeria dos antipetistas que, "contra tudo isso que está aí", vai querer mesmo é a reeleição de Jair Bolsonaro.
E Bolsonaro, com todos os defeitos que tem e que prejudicam o Brasil, tem a virtude de ser um estrategista perigosamente habilidoso e capaz de improvisos. Convém ficarmos de olho.
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