O completo desprezo da nossa sociedade, conduzida por uma classe média provinciana, estúpida e hipócrita, à crise cultural brasileira, atinge níveis vergonhosos e constrangedores.
Além de muita gente achar que o Brasil está culturalmente "uma maravilha", se iludindo com a aparente produtividade do entretenimento cultural e das redes sociais, a ideia de "crise cultural", quando é admitida, chega ao nível da piada de tão ridícula.
Vi pela busca na Internet o termo "crise cultural", entre aspas, acrescido de "brasileira", e a situação é bastante alarmante.
A maioria das referências se refere somente à falta de investimentos financeiros em atividades culturais. Uma visão puramente economicista, diga-se de passagem.
Há também a ilusão, de parte de muitos, de que a crise cultural foi inventada por Mário Frias, astro de Malhação que tornou-se secretário de Cultura do (des)governo Jair Bolsonaro.
Há a crença ingênua de que a cultura melhora se investir mais dinheiro.
Se dinheiro não traz felicidade, ele vai melhorar a cultura? Não.
Embora o dinheiro permita um aprendizado cultural e artístico maiores, um aprimoramento de algum talento latente ou não, no caso da mediocridade cultural que domina quase todos os espaços no Brasil isso não resolve.
A maquiagem que temos, por exemplo, no caso da música brega-popularesca dos anos 1990 para cá, fazendo com que muitos de seus cantores e grupos invistam numa "MPB de mentira", deixa até tais ídolos popularescos mais "palatáveis" para o público de maior poder aquisitivo.
Pode haver até mais profissionalismo, mais técnica, as músicas ficam "mais agradáveis" e os arranjadores trabalham dobrado para dar um aparato chique ao intérprete popularesco.
Só que tudo é um faz de conta, e não dá ao ídolo popularesco aquele talento visceral que a gente vê nos artistas da MPB autêntica.
Hoje vivemos o império da mediocrização, da imbecilização cultural a olhos vistos.
Não dá para fingir que tudo está bem, que o Brasil será a sucursal do paraíso ou achar que meras bolhas sociais, pequenas e isoladas entre si, sirvam como pretexto para a falácia de que "existem muitas vozes e muitas narrativas" dada por essa turminha "isenta" que vive da mania de passar pano em tudo.
Nosso país está culturalmente sucateado. E não é obra de Mário Frias. Vem desde que o magnata Abraão Medina, do Rei da Voz e pai de Roberto Medina, do Rock In Rio, lançou o primeiro ídolo brega-popularesco brasileiro, Orlando Dias, por volta de 1958.
Orlando Dias era pseudônimo de Adauto Michilles, já falecido, usado para confundir com o grandioso Orlando Silva, o "cantor das multidões".
Responsável pelos sucessos "Perdoa-me Pelo Bem Que Te Quero" e "Tenho Ciúme de Tudo", Orlando Dias foi uma espécie de Luan Santana do biênio 1960-1961, no sentido de ser um cantor cafona para o público jovem, jogado em programas como Alô Brotos, da TV Tupi.
Naquela época, a música popularesca só era ouvida nos meios rurais. Até os subúrbios estavam mais próximos do sambalanço e das serestas.
Só depois do golpe militar de 1964 é que a música brega-popularesca, a partir dos primeiros ídolos cafonas que emulavam, tardiamente, boleros pasteurizados e rock italiano, além de pastiches ruins de sambalanço (como o "sambão-joia"), é que cresceu vertiginosamente.
Isso se tornou ainda mais intenso de meados dos anos 1980 para cá, e, principalmente, a partir de 1990, quando a música brega-popularesca se expandiu de maneira mais agressiva, como um câncer.
E a coisa piorou quando, a partir de 2000, houve uma campanha intelectual que misturava pretensão, coitadismo e demagogia, dos chamados intelectuais "bacanas", a gourmetizar a bregalização não só musical, como também comportamental.
É a tal campanha do "combate ao preconceito", descrita no meu corajoso e trabalhoso livro Esses Intelectuais Pertinentes..., livro considerado indigesto por essa classe média "feliz da vida" que inaugurou essa fase de positividade tóxica que toma conta do nosso país.
Este livro que eu fiz com muito trabalho de pesquisa explica muito bem a crise cultural de nosso país, e como o tal "combate ao preconceito" trata o povo pobre de maneira caricatural.
Mas, paciência, a "nossa querida" classe média, essa multidão abastada do "Admirável Brasil Novo", está ocupada com livrinhos de romances que soam pastiches de seriados de canais de streaming da TV por assinatura.
As pessoas não gostam de admitir que existe crise cultural, porque querem o hedonismo vazio, o consumismo de emoções baratas que alternam entre o profano e o sagrado, mas sempre atendendo a impulsos mentais e instintos que repousam em zonas de conforto cotidianas.
É a classe média que parece querer se divertir, apenas, mas no seu pretensiosismo discursivo hipócrita, confundem Entretenimento como Cultura.
O Entretenimento pode até servir de termômetro para a situação cultural de um país, região ou comunidade, mas não pode ser confundido com Cultura.
Entretenimento visa o tempo presente. É momentâneo, provisório. Cultura visa a posteridade e, mesmo momentânea, seus efeitos se tornam mais permanentes.
Me sinto triste e envergonhado com os rumos que o Brasil vive hoje, com a mediocrização cultural trazida por diversos aspectos: música popularesca, literatura anestésica, subcelebridades.
Aliás, ver que o Big Brother Brasil quer ser a Hollywood brasileira em termos de reputação é de fazer careca arrancar os cabelos que não tem e pessoa muda sair correndo pelas ruas gritando com a voz que não possui.
E ver que a coisa está tão avassaladora que até artistas, jornalistas e intelectuais competentes acabam passando pano na mediocridade para sobreviver é também catastrófico.
Paciência. Os EUA dos anos 1920 viveram essa mesma situação e deu na Crise de 1929.
A Europa sonhava com um pretenso glamour parecido com o Brasil de hoje e veio a tirania nazi-fascista.
Os piores pesadelos sempre começam como sonhos bons.
Nos meus tempos de Niterói, aprendi que muitos dias de tempestades começam como dias ensolarados e calorentos.
A crise cultural que a "boa sociedade" brasileira se recusa a admitir se mostrará com maior claridade nos próximos tempos. E esperar e ver.
Comentários
Postar um comentário