Isso não está explícito no meu novo livro, Esses Intelectuais Pertinentes..., por ser uma observação que obtive após minha obra ficar pronta.
Ela está presente no livro Subcidadania Brasileira, do sociólogo Jessé Souza, e aponta para a relação do dependente formalmente livre com seu dominador.
Jessé toma como ponto de partida uma monografia de Maria Sylvia Carvalho Franco sobre a região do Vale do Paraíba (que envolve Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro).
Maria Sylvia estudou as zonas rurais dessa região e observou o fenômeno do "dependente formalmente livre".
Ele é um resultado das relações sociais ocorridas após a escravidão. É um fenômeno que, segundo Jessé, existe em todo o Brasil, com as suas peculiaridades regionais respectivas.
Nelas, uma parcela de pobres passou a adotar uma perspectiva servil de vida, sem explicitar sua submissão ao poder dominante local, simbolizado pelo grande proprietário de terras.
Opta-se até pelo abandono da liberdade e da individualidade e fazer o que o dominador deseja para obter, deste, a proteção e alguns benefícios de ordem paternalista.
Isso é o que Jessé Souza define como relações de favores e proteção.
Há muito nas classes populares essa relação de poder, diferente do que havia na escravidão.
O escravo sofria a violência explícita, moral e física, diferente do dependente formalmente livre, que tem a ameaça simbólica da violência moral ainda mais sutil.
A pistolagem é apenas um aspecto complexo, diferente do contexto do escravismo. E, além disso, pistolagem é um dos "serviços" que o dependente formalmente livre realiza sob as ordens do seu dominador.
Essa relação de servilismo me lembra muito a moral do Espiritismo brasileiro, através daquelas ideias do "grandioso médium" de Minas Gerais.
De família rural, saudosa do Monarquismo e de moral medieval, o tão adorado "médium" via a vida humana como se fosse sempre uma gigantesca zona rural.
De acordo com o "moderníssimo médium", é como se nós nascêssemos só para sermos peões de fazenda, enfermeiros, cozinheiros e professores. Na visão "futurista" dele, mal havia lugar para operários de fábrica, dentro dos padrões incipientes do começo da Revolução Industrial.
A existência humana era só servidão, obediência, ser submisso, rezar em silêncio, aceitar o sofrimento calado, sem reclamar, engolindo sapos, aceitando quieto desaforos e humilhações.
É, também, levar susto a cada adversidade, sofrer desgraças uma atrás da outra e ainda ser aconselhado a agradecer a Deus por tudo isso.
Li isso nas obras do "bondoso médium", nos meus 28 anos em que eu fui espírita (à maneira brasileira), entre 1984 e 2012.
Infelizmente, isso virou uma tradição moralista muito perigosa. E, embora Jessé Souza fale que o servilismo ocorre no vácuo de uma "religiosidade de fundo ético", creio que o servilismo ocorre, sim, em função de uma outra religiosidade.
Essa outra religiosidade difere da acima mencionada, porque Jessé fala de uma religiosidade protestante ou católico-moderna, e a religiosidade do Espiritismo no Brasil é a medieval.
Pouca gente tem ideia do que é essa religião sórdida que é o Espiritismo por aqui. Não tem ideia do quanto o legado de Allan Kardec sofreu violentas traições, com gravidade mil vezes maior do que Judas Iscariotes fez contra Jesus Cristo, que já era uma grave traição.
Muita gente se ilude com a "embalagem", com a fachada do "nosso" Espiritismo, que vende a falsa imagem de "progressista", "moderna", "esclarecedora" e "futurista".
É só ouvir esse "canto de sereia" (ou melhor, "canto do médium de peruca", deixemos as inocentes sereias modernas longe disso) para se afogar nos mares perigosos do obscurantismo.
Nos meus 28 anos de Espiritismo brasileiro, eu pude conhecer a fundo seu conteúdo, e, como muitos alertam, nunca passou de um Catolicismo medieval com botox.
Isso é tão certo e verídico que um antigo padre jesuíta do Brasil colônia, radicalmente medieval, foi adotado como um "pensador espírita", bem mais à direita que o xará Macron da França, em que pese a falsa defesa do jesuíta ao comunismo, num texto de 1945.
Com a linguagem que lembra um colunista de Veja falando sobre a "esquerda que gostaria de ver", o "jesuíta espírita" dizia que o comunismo "só teria validade" se estivesse de acordo com os "princípios cristãos".
Isso é eufemismo para a submissão aos conceitos medievais do Catolicismo. Mesmo as alegações sobre "paz" e "fraternidade" seguem essa lógica, porque nem sempre essas palavras representam coisas boas.
Esses "princípios cristãos" envolvem conceitos nada esquerdistas como a servidão ao dominador, a aceitação da desgraça e até a renúncia, se preciso, ao que é mais valioso nos bens necessários e na manifestação da individualidade.
Daí para aceitar a redução salarial e a perda de direitos trabalhistas é um pulo. E muitos ainda pensam que o "médium de peruca" e o "jesuíta do além-túmulo" são almas-gêmeas de Lula, quando, na verdade, são seus extremos opostos.
Os bolsonaristas também falavam muito essas palavras. Tanto bolsomínion dizendo, nas redes sociais, que era "da paz", e os mais "cristãos" falando em "sermos irmãos", desde que seja a tal "paz sem voz" da canção de O Rappa ou a "vida de gado" da canção de Zé Ramalho.
E o que o servilismo, espécie de "cláusula pétrea" do moralismo medieval do "nosso" Espiritismo, pode ser explicado na dita "cultura popular" de hoje?
Simples. É aquilo que os intelectuais "bacanas" ocultam, do "realismo etnográfico" de Ivana Bentes ao reacionarismo jocoso de Eugênio Raggi, passando pela porralouquice pós-tropicalista de Pedro Alexandre Sanches.
Para eles, o povo pobre é uma multidão do Jardim do Éden, no Paraíso bíblico, dotado de uma pureza, uma ingenuidade, uma inocência infantil, ao qual se atribui a capacidade de fazer reforma agrária ou a revolução socialista através do rebolado funqueiro ou da dor-de-corno brega.
É um ponto de vista que parece agradável e positivo à primeira vista, mas não é menos etnocêntrico e, também, não menos cruel sob o ponto de vista elitista.
A "ausência" de mecanismos de manipulação do povo pobre pelo entretenimento popularesco, cuja denúncia faz um Eugênio Raggi saltar da cadeira e evocar o Instituto Millenium que está dentro do seu coração, se dá, na verdade, na ideologia do dependente formalmente livre.
O entretenimento popularesco reflete esse dependente formalmente livre.
Há uma troca de favores entre o poder dominante - grandes proprietários de terras e seus representantes na política e na mídia, além das alianças com grupos empresariais diversos - e a suposta "cultura das periferias", que já não é feita necessariamente pelo povo pobre.
Afinal, tanto as agências de entretenimento popularesco quanto os "coletivos" supostamente sociais que existem - como os vários dedicados ao "funk" - são feitos por pessoas emancipadas, em condições semelhantes aos dos capatazes de fazendas ou até mesmo a capangas de bicheiros.
Os bicheiros, no Rio de Janeiro, funcionam como equivalentes aos latifundiários, até porque vários deles também o são.
Voltando à tal "cultura das periferias", mesmo o populismo dos intelectuais "bacanas" é bastante seletivo.
Eles não falam necessariamente do trabalhador comum, ou do desempregado das comunidades pobres, ou da mãe dona-de-casa pobre que fica preocupada ao ver sua filha adolescente se expor ao assédio machista no "baile funk" ou alguma festa popularesca similar.
A tão admirável intelligentzia, até hoje "santificada" pela maioria das páginas da Internet, blinda apenas os pobres que se envolvem em atividades arriscadas, como o comércio clandestino e a prostituição.
E toda essa pregação feita nos papéis, arquivos HTM e palestras na "cara" da mídia progressista!
São visões elitistas, que, embora tidas como "sem preconceitos", são muito preconceituosas, porque chegam ao atrevimento de atribuir a "qualidade de vida" do povo pobre a paliativos de alto risco: morar em casas precárias, viver de supemprego, prostituição e alcoolismo.
Sim, é isso que a nossa "tão admirável" intelligentzia tanto pregou, com um povo pobre formalmente livre no entretenimento popularesco bancado pelas oligarquias.
E tudo isso se recusando a admitir que essa "verdadeira cultura popular" nada tem de verdadeira, porque aposta na idiotização do povo pobre que nossa "generosa" intelectualidade não quer ver.
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