O GRANDE ENGANO DAS ESQUERDAS É ACHAR QUE O CONFLITO DIREITA X ESQUERDA É UM MANIQUEÍSMO FÁCIL DE RAIVA X ALEGRIA.
As esquerdas identitárias, que monopolizam o imaginário esquerdista que prevalece no Brasil, deixaram a direita reacionária abocanhar grandes fatias do Congresso Nacional. Os identitaristas, ou melhor, os "identotários", não deram apenas com os burros na água, mas com os dois patinhos na lagoa, pois o número 22 deu uma rasteira no número 13 nas votações para o Poder Legislativo.
Infelizmente, o que se viu foram erros sucessivos, constantes e preocupantes no âmbito da esquerda. Erros gravíssimos, que permitiram com que o bolsonarismo arrogante se fortalecesse, desde que o chamado Movimento Fora Bolsonaro, com sua má vontade em fazer protestos de ruas - que, quando eram feitos, ainda assim eram um Carnaval identitarista sem indignação de verdade - , confundiu revolta com chacota.
Pois as chacotas contra Damares Alves, Sérgio Moro, Ricardo Salles e companhia favoreceram seu ingresso nas urnas. Enquanto as esquerdas médias comemoraram o sepultamento da Operação Lava Jato, eis que Sérgio Moro tornou-se senador e fará, já no começo do próximo ano, dobradinha lavajatista no Congresso Nacional, com a esposa Rosângela Moro e o "parça" Deltan Dallagnol atuando na Câmara dos Deputados.
As esquerdas tornaram-se vergonhosas de tal forma que a colunista do UOL sintetizou esse grupo festivo da seguinte forma: definindo-o como multidões de "Che Guevara de apartamento (de luxo)" que "falam como Fidel mas gostam do mundo segundo Rockefeller".
Aí eu me lembro dos "brinquedos culturais" da direita que as esquerdas guardam para si. Um Brasil visto como se fosse um núcleo "socialmente positivo" das novelas das 21 horas da Globo, entre o núcleo pobre e o núcleo semi-pobre, neste caso com a inversão de papéis, nos quais as esquerdas, em vez de procurar o "médium" que está por trás do ator Nelson Xavier, famoso por interpretar idoso bonachão em novelas do horário nobre, procuram o Nelson Xavier que está por trás do "médium".
Preocupada com o maniqueísmo simplório entre direita raivosa e esquerda alegre, uma oposição binária entre ódio (bolsonarista) e amor (lulista), as esquerdas engolem, aceitam e apreciam muita coisa de direita que não investe na gramática nem na estética do raivismo, podendo transmitir um reacionarismo dissolvido em copo de água com açúcar, para ser digerido pelas esquerdas como um chá de boldo acoçado.
Essa dicotomia "raiva versus alegria" cria grandes pegadinhas, nas quais a Teologia do Sofrimento, corrente medieval do Catolicismo, era acolhida por esquerdistas como se fosse derivada da Teologia da Libertação, na verdade a sua oposta, só porque falta o discurso da raiva.
A Teologia do Sofrimento, assim como um certo Espiritismo defendido por um "médium" cafona e reacionário que usava peruca, tem o mesmo conteúdo de moralismo punitivista do bolsonarismo. São crenças que defendem o prejuízo do outro, a sua ruína, os malefícios sem fim. Mas a Teologia do Sofrimento e o Espiritismo brasileiro evitam toda a estética do raivismo, e as esquerdas, enganadas por isso, tomam tais crenças como "progressistas".
Ou seja, uma teoria pode desejar a ruína do outro, e, o que é pior, obrigar o sofredor a aguentar tudo calado, sem reclamar, sem esboçar uma única vírgula de lamento. Se não é um Malafaia que rosna vomitando ódio tais ideias, mas um velho "médium" com voz esganiçada, frágil, calma e em tom baixo e suave, as esquerdas aceitam isso achando que se trata de um conceito "libertário", mostrando o quanto nossos esquerdistas se servem de venenos com sabor de xarope.
Foi essa falta de discernimento que fez com que uma Madre Teresa de Calcutá fosse aceita por esquerdistas de vida confortável, sendo vista como "símbolo da bondade e do amor ao próximo", se esquecendo que ela foi uma megera desmascarada pelo jornalista Christopher Hitchens, defensora de um método de alojamento de miseráveis e doentes não muito diferente do holocausto nazista (o termo "holocausto", aliás, é um dos jargões da "libertária" Teologia do Sofrimento).
Na cultura popularesca, a imbecilização do povo pobre se deu também pelo evitamento do discurso raivista. A combinação de coitadismo com pretenso triunfalismo popular substituiu os antigos movimentos sociais. O entretenimento popularesco, subserviente na peregrinação passiva dos pobres aos galpões para ouvir o ídolo musical do momento, era tido como "ativismo social" por intelectuais que conquistaram fácil as esquerdas através de um discurso coitadista e não raivista.
Por meio dessa retórica, a imbecilização do povo pobre era defendida porque "é o que o povo consegue ser e fazer". Comentários assim sobre o ritmo arrocha (espécie de variante eletrônico do brega de Amado Batista e Odair José) foram defendidos por uma Malu Fontes, comunicóloga baiana, sob a desculpa de que "é o que o povo sabe fazer", uma posição não muito diferente à de uma dondoca bolsonarista, mas que se sobressai nas esquerdas pela ausência de alguma estética raivista.
O "funk" é tão machista quanto qualquer bolsonarista que posa nas redes sociais com um fuzil na mão. As funqueiras apelam para a objetificação do corpo feminino, dando a cara a tapa no papel ridículo da mulher sexualizada. Mas tudo isso é difundido sem raivismo, sem os "latidos" histriônicos de fascistas de olhar arregalado e comentários alarmistas. O "funk" não veio de Marte, mas veio de um mesmo contexto do Rio de Janeiro conservador que gerou Bolsonaro.
As esquerdas desconhecem isso e acabam demonizando o senso crítico, rindo das "Cassandras de Troia" que alertam sobre certas coisas. Como, por exemplo, Lula escolhendo Geraldo Alckmin, um neoliberal incurável que nunca fez autocrítica e nunca pediu desculpas a trabalhadores, estudantes e à população de Pinheirinho (São José dos Campos) pela repressão truculenta.
Tudo é aceito sem contestação. Afinal, Geraldo Alckmin não rosnava, falava sempre suave, baixinho, daí ter sido aproveitável para os esquerdistas médios, que, pelo jeito, não veem a dicotomia do progressismo contra o retrocesso pelo âmbito das ideias, das práticas e dos fatos produzidos. Veem a coisa só pelo humor, pela fachada discursiva. Se é raivoso, é de "direita". Se é calminho e alegre, é de "esquerda".
Com isso, ocorre uma perigosa inversão de valores. Agricultores invadindo, em protesto contra a sua miséria, fazendas improdutivas, pelo protesto irritado e revoltado, são "direitistas", mesmo quando defendem a causa progressista do clamor das necessidades das classes populares. A já mencionada Teologia do Sofrimento, no entanto, é um receituário digno de um ideário bolsonarista, mas como é dito "sem raiva" e sob a promessa de uma "vida melhor" no "outro mundo", acaba sendo creditado erroneamente como uma doutrina "de esquerda".
É por isso que a direita alternativa se ascendeu através dessa preocupação das esquerdas em separar as ideologias pelo "senso de humor". E isso é o motor do identitarismo de esquerda, da "esquerda festiva" que "se mobiliza através do amor". Só que esses sorrisos, essa folia e essa religiosidade não ajudaram em momento algum a fazer do Congresso Nacional um ambiente mais progressista. Pelo contrário, os erros das esquerdas identitárias deram com a votação surpreendente dos "dois patinhos na lagoa", o 22 do PL bolsonarista.
A indignação sufocada fez com que a "frente ampla da raiva" fizesse o bolsonarismo - que pode perder o Executivo, mas terá o Legislativo na palma de sua mão - respirar nas urnas, mesmo com o presidente na segunda colocação no quadro presidencial.
Comentários
Postar um comentário