O comercialismo musical no Brasil é um fenômeno surreal. A mercadoria quer ser obra de arte, as pessoas, coisificadas, querem ser consideradas artísticas. Tudo é feito sem levar a sério, só para fazer sucesso e ganhar dinheiro, mas há toda uma conspiração para que o jabaculê musical de hoje insista em ditar as normas para o folclore do futuro.
Os intelectuais "bacanas" acordaram felizes quando duas declarações saíram em favor do brega-popularesco. Uma do cantor pop dinamarquês Lucas Graham, do sucesso "Seven Years", e outra do nosso conhecido Caetano Veloso, artista de grandioso valor mas às vezes afeito a posturas bastante duvidosas.
Lucas Graham, conhecido pelo pop "bom moço" - dá para perceber que ele não é "necessariamente" um artista de vanguarda - havia declarado o seguinte sobre a música de Mr. Catra:
"Muito boa. A energia do baile funk é muito parecida com a do gangsta rap dos anos 90. É muito nervosa porque, se você cresceu numa favela, está sempre com medo que alguém te roube, te tire algo. E você sabe que a vida é preciosa. Então porque não aproveitá-la ao máximo?"
Ele jura que Mr. Catra é "muito famoso" na Dinamarca e que havia feito uma apresentação "bem sucedida" por aquele país, considerado um dos mais evoluídos do planeta. Paciência. Lucas Graham talvez seja exceção no lugar como cantor de pop bom moço. E deve ser um dos poucos gringos masoquistas que gostam de lixo cultural produzido no Brasil.
Quanto a Caetano Veloso, que, repetindo, é um artista de grande talento e muitas contribuições de valor para a MPB autêntica, ele no entanto manifesta sua complacência com o comercialismo musical brasileiro, sobretudo desde quando fez dueto com Odair José no festival Phono 73. Eis o que Caetano disse sobre o "funk" e o "sertanejo universitário":
"Eles começaram importando o Miami Bass para as festas. Depois, começaram a compor suas próprias músicas. E colocaram uma batida que vem da umbanda e do maculelê. Então funk no Brasil hoje é uma coisa totalmente brasileira. Essas surpresas acontecem, como aconteceu com o carnaval na Bahia. E como está acontecendo hoje com o sertanejo universitário. É uma música vulgar e sentimental e você acha que é bobagem. Mas eles são tão afinados. E o próprio fato de que a música do Centro-Oeste hoje está presente na região costeira do país, isso é um fato cultural que revela muito sobre o que o Brasil se tornou. Ou pode se tornar".
POR TRÁS DA EMBALAGEM
A embalagem ideológica do brega-popularesco é de "vanguarda". Muitas bobagens panfletárias, militantes e pretensamente etnográficas foram ditas, escritas e filmadas sobre os ritmos brega-popularescos.
É como se alguém criasse um discurso acadêmico ou militante dizendo que o Big Mac, aquele hambúrguer da rede McDonald's, é "comida de vegetariano". Como se não bastasse a rede estadunidense com filiais no mundo inteiro se autoproclamar "restaurante" e vender um lanchinho de fast food como se fosse "almoço irresistível". Vamos lá:
DISCURSO MILITANTE: "Enquanto a sociedade neuronutricionista diz que o Big Mac é um engodo engordurante e cancerígeno, a ampla aceitação da rapaziada ao simpático sanduíche, trabalhado por gente vinda das periferias para as cozinhas transbrasileiras e transamericanas da McDonald's, o que mostra que a presença de alfaces, tomate, cebolas e pickles comprovam o valor vegetariano do 'grandioso mac'".
DISCURSO ACADÊMICO: "O Big Mac é vegetariano por inserir no contexto de tomates, alfaces, cebolas e pickles, verduras vindas da roça, das plantações, da Natureza. Como uma cultura de raiz, o Big Mac produzido no Brasil já é brasileiro, e a carne vinda de bois que, comendo capim, também são vegetarianos. Tudo, tudo verde e saudável (sic)".
Enquanto há todo um discurso dizendo mil maravilhas sobre o "funk" e o "sertanejo universitário", é só você ouvir os discos desses gêneros que a "fantástica fábrica de chocolate" dos discursos de intelectuais, acadêmicos, jornalistas e famosos em geral tidos como "bacanas", prometendo transformar o jabaculê de hoje no folclore de amanhã, seja derrubada completamente.
No "funk", ritmo que poucos admitem ser dotado de ferrenho rigor estético - só flexibilizado para atingir públicos de elite, inclusive estrangeiros - , você ouve diferentes intérpretes fazendo o mesmo tipo de som, inclusive até com um "tchuscu-tchuscudá" que descobri ser um sâmpler usado pelo DJ.
O ritmo era tão austero esteticamente, nivelado sempre por baixo, que o MC era proibido de tocar instrumento, fazer melodias, botar algo diferente. O DJ não deixava, o DJ é que decidia se poderia haver mudança sonora ou não no "funk". E todas as mudanças eram feitas de forma tendenciosa.
Só a título de comparação, no começo da década de 1960, quando o rock'n'roll só tinha seis anos de existência, uma das cantoras de apoio do roqueiro Bo Diddley, contemporâneo de Bill Haley, Little Richard, Chuck Berry e outros, tocava guitarra. Isso em 1960, 1961, creio que até antes. E era uma negra muito bonita, que fazia vocal de apoio mas interagia com Bo com a guitarra.
E no "funk"? Passaram uns quinze anos após tanta baboseira acadêmico-militante e somente nos últimos dois ou três anos se viu algum MC tocando percussão ou arranhando um violão. Mas tudo de forma forçada pelas circunstâncias, porque vai para 1990 e veja um MC pedindo para tocar instrumento no "funk de raiz". O DJ não deixaria.
E o "sertanejo universitário". Um engodo que não é música caipira nem música universitária. Se o sertanejo universitário honrasse seu rótulo, em vez dessas bobagens que se ouve por aí, teríamos um misto de Almir Sater com Flávio Venturini, Cornélio Pires com Tom Jobim, Inezita Barroso com Sílvia Telles, Tonico e Tinoco com Toninho Horta.
Desde que Chitãozinho & Xororó misturou Waldick Soriano com Tex-Mex, empastelando tanto a música caipira brasileira quanto o Nashville Sound, o "sertanejo" se transformou num coronelismo musical que sempre contou com a complacência de intelectuais "bacanas", que se dizem "esquerdistas convictos" mas carregam os mesmos preconceitos "sem preconceitos" trazidos da Rede Globo e da Folha de São Paulo.
Como o "funk", o "sertanejo" cresceu às custas de muito jabaculê. Só que hoje jabaculê em rádio FM ficou complicado, desde que a AeMização das FMs transformou a Frequência Modulada em "caixa dois" dos dirigentes de futebol.
Daí que o antigo jabaculê de pagar programador para tocar o sucesso do momento se transformou agora no jabaculê de pagar intelectuais, artistas, jornalistas e outros "bacanas" - vale até o superbacana Caetano - para transformar a breguice de hoje numa pretensa vanguarda de amanhã.
"Funk carioca" não é nova Tropicália. "Sertanejo universitário" também não. São apenas ritmos do comercialismo musical brasileiro que adotam um falso discurso vanguardista para tentar convencer a opinião pública e fazer suas músicas durarem mais do que um verão. É a Música da Payola Brasileira.
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