Com a retomada conservadora doentia, como se nossas elites de repente fossem tomadas de um surto de esquizofrenia crônica, defender os índios agora gera revolta nas "classes produtoras".
Isso sempre ocorreu, mas não da forma explícita, organizada e sob o mais rígido verniz moralista que se observa desde que o Brasil Temeroso se instalou, em maio passado.
Grupos como a Associação Brasileira de Criadores de Zebu, Sociedade Rural Brasileira, Associação Brasileira de Criadores de Girolando e Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Mangalarga Marchador fizeram manifestos condenando um samba-enredo para o Carnaval 2017.
"Xingu - O Clamor que Vem da Floresta" é de autoria dos compositores Moisés Santiago,/ Adriano Ganso, Jorge do Finge, Aldir Senna.
Sua letra defende a cultura do povo indígena e comemora os 55 anos de fundação do Parque Indígena do Xingu. no estado do Mato Grosso, reserva indígena fundada pelos irmãos Villas Bôas.
A alegoria, as fantasias e a estrutura do desfile são comandadas pelo carnavalesco Cahe Rodrigues.
A letra, pela defesa que faz aos povos indígenas, hoje ameaçados por tantas obras mastodônticas como hidrelétricas e hidrovias, entre outros projetos de similar envergadura, faz duras críticas à concentração de terra dos grandes fazendeiros.
Isso revoltou as associações ligadas à pecuária ou ao agronegócio.
E faz com que Ronaldo Caiado, líder e fundador da União Democrática Ruralista (UDR) e senador pelo DEM, goiano, pedisse até a criação de uma CPI para investigar os interesses que levaram a aprovação do samba-enredo.
Ronaldo Caiado está alucinado.
"Com tantos problemas no país, que sofre com traficantes, bicheiros e facções, causa perplexidade uma escola de samba atacar o agronegócio, orgulho do País, que é o único setor que gera tantos resultados positivos", tentou argumentar o senador, representante máximo da Bancada do Boi.
Os indígenas já foram ofendidos por uma jornalista da Rede Record.
No programa Sucesso no Campo, informativo rural da TV Record Goiás, a jornalista Fabélia Oliveira também se enfureceu com o enredo da escola de samba carioca.
"Que conhecimento o tradicional malandro carioca tem para falar do homem do campo, para falar do índio, da floresta, para dizer que está certo ou errado e para dizer que alguém pede socorro?", perguntou Fabélia.
Ela ainda acrescentou: "Eles falam que a floresta está pedindo socorro, mas não abrem mão da tecnologia do dia a dia, eles não abrem mão do veículo que eles andam".
Embora supostamente defendendo a cultura indígena, Fabélia disse que o índio, em contrapartida, "não tem acesso à tecnologia" e tem que "comer comida de geladeira".
Diz que, por "controle populacional natural", o índio "tem que morrer de malária, de tétano, do parto".
Ela ainda criticou os pedágios das aldeias indígenas que visitou e, ao ver os índios usando parabólicas e óculos de sol, definiu como "heroísmo" não os movimentos indígenas, mas os produtores rurais que "trabalham de sol a sol".
Nesta avaliação, a apresentadora evidentemente colocaria no mesmo peso os pequenos agricultores, estes sim os trabalhadores da terra, e as "classes produtivas", eufemismo para latifundiários, grileiros e até representantes de empresas estrangeiras que concentram terras no Brasil.
É triste ver agora que as elites rurais responsáveis pela concentração de grandes porções de terras e pelas alianças selvagens com o capitalismo predador estrangeiro, agora venham com vitimismo.
Isso sem falar que esses "humildes produtores da terra" aplicam nas plantações substâncias agrotóxicas proibidas na Europa e EUA, além de fazerem desmatamentos que já trazem sério impacto ambiental.
São tempos em que as elites lutam desesperadamente para recuperar privilégios e cometer abusos impunemente.
De repente os movimentos sociais passaram a ser amaldiçoados e os segmentos sociais menos privilegiados abertamente hostilizados.
Dá medo viver num país desses.
Por ora, ficamos com a letra do samba-enredo.
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Xingu, O Clamor Que Vem da Floresta (Samba-Enredo 2017)
G.R.E.S. Imperatriz Leopoldinense (RJ)
Brilhou a coroa na luz do luar!
Nos troncos a eternidade a reza e a magia do pajé!
Na aldeia com flautas e maracás
Kuarup é festa, louvor em rituais
Na floresta, harmonia, a vida a brotar
Sinfonia de cores e cantos no ar
O paraíso fez aqui o seu lugar
Jardim sagrado, o caraíba descobriu
Sangra o coração do meu Brasil
O belo monstro rouba as terras dos seus filhos
Devora as matas e seca os rios
Tanta riqueza que a cobiça destruiu!
Sou o filho esquecido do mundo
Minha cor é vermelha de dor
O meu canto é bravo e forte
Mas é hino de paz e amor!
Sou guerreiro imortal derradeiro
Deste chão o senhor verdadeiro
Semente eu sou a primeira
Da pura alma brasileira!
Jamais se curvar, lutar e aprender
Escuta menino, Raoni ensinou
Liberdade é o nosso destino
Memória sagrada, razão de viver
Andar onde ninguém andou
Chegar aonde ninguém chegou
Lembrar a coragem e o amor dos irmãos
E outros heróis guardiões
Aventuras de fé e paixão
O sonho de integrar uma nação
Kararaô, Kararaô, o índio luta por sua terra
Da Imperatriz vem o seu grito de guerra!
Salve o verde do Xingu, a esperança
A semente do amanhã, herança
O clamor da natureza a nossa voz vai ecoar
Preservar!
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