Tudo indica que o governo Temer começou com a intelectualidade pró-brega, ainda na crise do governo Fernando Henrique Cardoso.
Foi em 2001. Tragédia com a Plataforma P-36 da Petrobras, crise do apagão com os baixos níveis de água nas hidrelétricas.
Diante disso, uma geração de intelectuais passou a se articular para defender a bregalização cultural.
Era uma coisa estranha. Intelectuais defendendo valores de gosto duvidoso.
Era a "ditabranda do mau gosto".
Alguns se adiantaram. Na Bahia, Milton Moura criava um artigo porra-louca para defender o pagodão pós-Tchan nos meios acadêmicos, já em 1996.
Mas, no plano nacional, o marco foi Eu Não Sou Cachorro, Não, de Paulo César Araújo.
Araújo queria controlar a história, como se pudesse alterar o passado.
Queria ele que os bregas que ele ouvia quando viveu na Bahia fossem vistos como "progressistas", "vanguardistas" ou "revolucionários".
Caiu em contradição, quando disse que os bregas eram despolitizados, mas desperdiçou muitas páginas do livro tentando dizer que "Eu Não Sou Cachorro, Não", de Waldick Soriano, era uma "canção de protesto" do nível de "Opinião", de Zé Kéti.
Sabe-se que "Opinião" virou nome de uma peça de teatro de 1964, dirigido por Augusto Boal e com texto de Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes, o mesmo trio criador de A Grande Família.
No elenco, Nara Leão, João do Vale e Zé Kéti. Mais tarde, Maria Bethânia entrou no lugar de Nara.
Paulo César de Araújo queria, com isso, substituir a MPB de protesto, que em seu referido livro tentava associar à ditadura militar, pelo brega que ele tentou vender como um "movimento libertário".
Os fatos, porém, vão contra Paulo César: a História registra que os ídolos cafonas simbolizavam o ufanismo da ditadura militar, e não um movimento de resistência a ela.
E mais: é impensável que as rádios que tocavam música brega fizeram isso por um ímpeto anti-ditatorial durante o prazo de vigência do AI-5, entre o fim de 1968 e o fim de 1978.
As rádios que tocavam esses sucessos são justamente as que apoiaram a ditadura militar.
E aí criou-se toda uma visão de que a cultura popular brasileira tinha que se sujeitar ao mau gosto, visto tendenciosamente como "libertário".
Era a "ditabranda do mau gosto".
E é suspeito que tudo isso viesse ainda às vésperas do governo Lula, e atravessou todos os governos Lula e Dilma e parte do governo Temer apelando para a bregalização.
Vieram Paulo César Araújo, Pedro Alexandre Sanches, Hermano Vianna, Bia Abramo e tantos outros, empurrando a desculpa do "combate ao preconceito".
E vieram fazendo proselitismo na mídia de esquerda, embora esse grupo de intelectuais culturais - não nos esqueçamos de que Milton Moura, na Bahia, apoiava de longe a empreitada, tal qual o hoje falecido Roberto Albergaria - exalasse um forte odor de IPES.
Para quem não sabe, o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) era um órgão de fachada, apelidado de "ipês" e correspondente ao atual Instituto Millenium.
E qual o propósito dessa intelectualidade que, da noite para o dia, tentou impor o princípio do "quanto pior, melhor" da cultura popular brasileira, não só a música mas principalmente ela?
Simples. Impedir que ocorresse uma reação da classe cultural nos primeiros anos da ditadura militar.
Entre 1964 e 1967, tivemos festivais da canção, tivemos Cinema Novo e as atuações de atores, humoristas e intelectuais da época.
Isso impulsionou bastante a sociedade. Animou o movimento estudantil, que ia para as ruas pedir a volta da democracia, e isso refletiu até na imprensa e na política.
O Correio da Manhã, que pediu o golpe de 1964 contra João Goulart, passou a se opor aos militares.
Os arquirrivais Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda fizeram as pazes e organizaram a Frente Ampla.
Mais tarde, tivemos o Tropicalismo, a revista Pasquim e o feminismo de Leila Diniz.
E tínhamos velhos sambistas relembrados pelas gerações recentes. Se via Donga em 1967 na TV, no programa da Hebe Camargo.
Entre 1964 e 1968 o Brasil respirou cultura e ela virou uma arma contra a ditadura militar, que teve que endurecer e desmontar a cultura aos poucos.
E esse desmonte abriu caminho para a música brega, para a mídia policialesca, para o erotismo vulgar.
Só na música brega criou-se as bases do ultracomercialismo musical brasileiro de hoje, uma espécie de pop ultraliberal bem ao gosto do governo safadão de Michel Temer.
No começo, o brega forçou demais no estrangeirismo: boleros, mariachis, country, e um roquinho postiço de inspiração italiana.
Mas como estava a serviço do "milagre brasileiro" e sua "brasilidade para turista ver", o brega teve que criar arremedos de ritmos regionais brasileiros.
E aí veio a lambada, o "sertanejo" e os elementos que mais tarde dariam no "forró eletrônico" e na axé-music.
A MPB autêntica perdeu fôlego em 1978, quando vieram os discos de produtor, subordinando os emepebistas a uma fórmula comercial de discos superproduzidos e pouco criativos.
Enquanto isso, o brega ganhava um verniz de pompa e luxo, com Michael Sullivan colaborando com gosto para a máquina de manipular mentes de Roberto Marinho.
E vieram os "coronéis" ACM e José Sarney deram uma ajudinha para o brega-popularesco.
Montaram a máquina de forjar a suposta cultura popular dos anos 90, através das concessões clientelistas de rádio e TV.
A partir dessas concessões, tivemos mais bregalização cultural.
Vieram os "sertanejos" e "pagodeiros" com suas baratas, pimpolhos, tapas e beijos, promovendo as baixarias musicais da Era Collor.
Hoje o mercado tenta "emepebizar" alguns desses intérpretes, radicalizando a "MPB de mentirinha" para ser consumida durante as refeições.
Vieram também as "musas da banheira" do Gugu Liberato, uma delas resistindo como mulher-objeto até hoje.
E vieram os policialescos cujos apresentadores bancam os justiceiros eletrônicos, glamourizando a violência.
Mas esse lixo cultural despejado no gosto popular manipulado pelos barões de mídia nacionais e regionais só recebeu sua blindagem para valer nos anos 2000.
E aí vieram intelectuais bradando pelo "fim do preconceito", como se ignorassem que o povo pobre já era trabalhado, na cultura brega, de maneira bastante preconceituosa.
Os caras primeiro fizeram sua "etnografia de gabinete" na mídia venal. O livro Eu Não Sou Cachorro Não, a "bíblia" dos intelectuais bacanas, era só elogios na mídia plutocrática.
Depois eles tentaram empastelar os debates esquerdistas, fazendo proselitismo na Caros Amigos, Carta Capital e Revista Fórum.
Pedro Alexandre Sanches vestia a fantasia carnavalesca do "bom esquerdista", para lançar na mídia progressista pontos de vista que seriam mais apropriados na Folha e na Globo.
E aí vemos, com a distância do tempo, que o governo Temer começou não com seus rascunhos de vice-presidente em 2014, mas pela "etnografia" que a intelectualidade "bacana" vendia como "progressista".
A glamourização da pobreza, da ignorância, do grotesco, dos baixos instintos populares, do machismo, do racismo, do subemprego, do alcoolismo, da caricatura depreciativa do povo pobre.
Um ideal "libertário", mas culturalmente escravista, que mais valorizava a prostituição do que as prostitutas, estas querendo mudar de vida e não viver do corpo.
"É isso que o povo pobre gosta. É isso que o povo pobre sabe fazer", bradavam os intelectuais, do alto de seus computadores em seus apartamentos quase luxuosos.
Isso é "combater o preconceito"? Como se nunca tivéssemos tido Jackson do Pandeiro, Carolina Maria de Jesus, Milton Santos e Luiz Gonzaga vindos das classes populares.
Era a precarização da cultura popular, que nos fazia esquecer do grande legado cultural que acumulamos, querendo vender como "insurreição popular" um consumismo inócuo como o "baile funk".
Era a "Ponte para o Futuro" pela qual passavam os bondes funqueiros, os trios da axé-music, os aviões-forrozeiros, os camaros-amarelos "sertanejos".
Muitos pensavam que era tudo "progressista" e "libertário".
Grande engano. Era o show de abertura para o Michel Temer, feito pela bregalização cultural.
Era a precarização cultural das classes populares, que tirou o povo pobre do debate público e abriu o caminho para os sociopatas da direita.
Hoje os intelectuais "bacanas" fugiram de medo ou atuam de maneira mais envergonhada.
Depois que, sob a desculpa do "combate ao preconceito", realizou o desmonte da cultura popular brasileira.
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