Na falta de algum intelectual cultural de visão progressista e questionadora, já que o meio é monopolizado por jornalistas e acadêmicos vindos da mídia venal, o debate cultural é prejudicado.
Prevalece a visão de mercado, que remete à ilusão de que, só por atrair um público enorme de pessoas, um fenômeno comercial "tem grande valor cultural".
Mais um artigo reforça esta visão de "livre mercado" associada à cultura (vista sob um enfoque rentista, embora "etnicizado" e por vezes "guevarizado"), num discurso aparentemente conciliador.
É sobre o documentário Axé - Canto do Povo de um Lugar, do cineasta Chico Kertèsz, filho do astro-rei da rádio Metrópole, o ex-prefeito de Salvador Mário Kertèsz, cria da ARENA durante a ditadura militar.
O texto, como de praxe, é escrito por Pedro Alexandre Sanches, cria do Projeto Folha da Folha de São Paulo.
É o "bom esquerdista" entrevistando o filho do "dono das esquerdas baianas".
Sanches, a princípio, admite que a axé-music é uma expressão dos tempos neoliberais de Fernando Henrique Cardoso (o mestre oculto do referido jornalista).
Ao longo da entrevista com Chico Kertèsz, se fala, entre outras coisas, da preocupação em ver a axé-music perder espaço para o "funk" e o "sertanejo" no Carnaval baiano.
Uma preocupação fundamentada em termos comerciais. A cultura vista sob o prisma rentista.
Mesmo quando há a velha ladainha do "preconceito", se pensa nisso, embora sob uma retórica "etnicizante" em que se fale de "riqueza cultural".
Só que o que entrevistador e entrevistado não entendem é que existe música baiana e "música baiana".
O rótulo axé-music se remete mais aos nomes mais comerciais da música produzida na Bahia.
Há a descrição de nomes de valor duvidoso, como Ivete Sangalo e Bell Marques, além do grotesco É O Tchan.
Mas não há menção do cenário do "pagodão" (como Psirico) e arrocha (hoje fazendo parcerias comerciais com o "sertanejo universitário", em nível nacional).
Por outro lado, há uma música baiana genuína, que faz apenas papel de coadjuvante da festa que garantiu, durante anos, a "monocultura" baiana e o poder absoluto dos blocos carnavalescos.
Um poder que teve a colaboração do próprio pai de Chico Kertèsz, o dublê de radiojornalista Mário Kertèsz, que castrava o cenário radiofônico baiano.
Nele, o rádio AM não podia crescer (hoje, então, condenado à morte pelo lobby da telefonia celular, é até impossível), com a concorrência predatória das FMs, algumas com programação AeMizada.
Quando muito, rádios "classe A" tocando repertório classe Z (até a música romântica de um nome ruim do pop dançante era tocada sob o rótulo de "boa música").
E supostas rádios rock com linguagem enjoada de emissoras pop. Até porque uma similar da Fluminense FM iria comprometer o império da axé-music, com uma programação realmente especializada e criativa.
A música baiana de verdade, com Lazzo, Olodum, Ilê-Aiyê, Margareth Menezes, Gerônimo, Edson Gomes, é que expressa, sim, a riqueza cultural, como, no passado, Caetano Veloso e Gilberto Gil e, um pouco mais adiante, os Novos Baianos.
Há uma música artística e uma música comercial. Como é mais rentável, a música comercial predomina e ela é que é a axé-music propriamente dita.
Há um debate apenas em torno da economia da axé-music, como se o neoliberalismo de repente tivesse se voltado contra ela.
E aí tenta-se "socializar" as coisas: povo pobre, retomada de espaços públicos etc.
Algo que soa confuso, na medida em que Ilê-Aiyê e É O Tchan ganham o mesmo peso de valor.
E o texto se encerra de forma "conciliadora".
Fala de uma "hostilidade" de críticos culturais e do "afastamento" de acadêmicos à axé-music, superestimando a rejeição a "fenômenos populares".
Dois ou três críticos rejeitam tais fenômenos e a classe toda reage em pavor, como se uma marolinha tratada como se fosse um maremoto.
Pelo menos o documentário, a considerar o que Sanches escreveu, mantém a axé-music na sua situação contraditória.
Enquanto isso, fora desses círculos de apologistas da "cultura de massa", outras frentes culturais recuperam os espaços antes monopolizados pelos blocos de Carnaval baiano.
E este ano a axé-music terá três blocos a menos no Carnaval baiano e, migrando para o decadente Rio de Janeiro, fará seu exílio nos carnavais de rua da capital fluminense que absorveu o provincianismo que Salvador não quer mais ter.
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