Por causa da atividade plena das redes sociais e da movimentação da indústria do entretenimento, existe a ilusão de que tudo está bem no Brasil.
Pior: são muitas as declarações de gente influente na opinião pública de que vivemos "o melhor dos momentos".
Uma meia-verdade é pregada aos quatro ventos e repetida como se fosse um disco de vinil pulando.
A de que "existem muitas vozes, muitas narrativas e muitos espaços".
Num certo sentido, isso é verdade. Mas o problema são as vozes, narrativas e espaços que se tornam hegemônicos, sufocando as demais expressões, isoladas em suas bolhas sociais.
Também na Idade Média tivemos milhares de feudos e o período era considerado um dos piores da História da Humanidade. Nos feudos também havia "outras vozes, outras narrativas e outros espaços" que o poder político dos reis, associados à nobreza e ao clero, não compartilhavam.
Jornalistas culturais, intelectuais, acadêmicos e membros de coletivos sócio-culturais ficam repetindo esse mesmo discurso de que a cultura no Brasil está bem.
Acham que o cenário cultural é como um grande shopping center, uma mega store, no qual existe uma infinidade de bens culturais em oferta, numa sociedade supostamente em plena atividade mobilizadora.
A lógica é essa, bem mais de um mercado onde há milhares de fregueses e milhares de produtos em oferta.
Para o solipsismo dos mais intelectualizados, em que pese toda a passagem de pano em fenômenos culturalmente medíocres na literatura, na música, na televisão etc, a coisa fica fácil.
Eles têm dinheiro para comprar, à distância, aquele disco raro de jazz e rock de uma loja virtual na Europa ou nos EUA, ou aquele livro considerado "difícil" da literatura do século XX.
Por outro lado, parecem como adultos paternalistas diante dos fenômenos culturais medíocres, como se fossem crianças aprendendo a "fazer arte e cultura".
Esquecemos que a mediocrização não ocorre em função de uma suposta puerilidade ou intuição humanas, mas por interesses comerciais estratégicos.
Literatura analgésica, pop comercial ou música popularesca, subcelebridades etc não podem ser entendidos como uma suposta "vanguarda".
Se o cantor de sambrega Péricles parece "mais legal" do que o Eric Clapton de hoje, isso não pode refletir em méritos musicais.
A mediocridade musical de hoje soa "legal" e "simpática" porque interage com os jovens, mas isso tem um esquema de marketing e de normas de comunicação com o público por trás.
Além disso, o Ultraje a Rigor (que, admitamos, era muito bom musicalmente) também era "bem legal" em 1985 e 1986. "Independente Futebol Clube", gravada ao vivo, poderia se passar por um hino das esquerdas identitárias de hoje.
Os Raimundos também eram "bem legais" de 1994 a 1997, símbolo de uma "rebeldia" bem humorada que, com as diferenças de aspectos e contextos, corresponde ao k-pop de hoje em dia.
Hoje Ultraje a Rigor e Raimundos são símbolos de uma rabugice bolsonarista lamentável. Como Zezé di Camargo & Luciano que chegaram a enganar as esquerdas com seu falso humanismo, enquanto seus fãs trucidavam quem não gostava da dupla nas redes sociais.
O que temos nas redes sociais é um mainstream enrustido, um "sistemão" que finge ser transgressor, até porque a transgressão, hoje, virou uma mercadoria.
É claro que existe uma tentação de produzir Contracultura num copo d'água, atribuindo caráter revolucionário em episódios de lacração e memes cuja repercussão intensa não passa de fogo de palha.
Mas no Brasil que elegeu Bolsonaro com facilidade, mas têm muita dificuldade de tirá-lo do poder - vamos ver se o protesto de hoje possa garantir uma pressão mais definitiva - , não estamos num cenário cultural bom.
Se os jovens estão felizes com a mediocridade reinante, que faz com que a música popularesca de hoje, com "funk", "sofrência", "pisadinha" etc, e o comercialismo pop "identitário" estrangeiro, sejam considerados "a música da sua geração", o problema é deles.
Mas só porque os jovens se identificam com essas tendências musicais não significa que elas sejam menos comerciais por causa de alguma suposta rebeldia aqui ou um pretenso empoderamento acolá.
O que esses jovens curtem é tão comercial quanto um banco de investimentos. É certo que os impulsos da idade vão se rebelar com essa ideia, achando que k-pop é "música de vanguarda" e que É O Tchan e Grupo Molejo "são alternativos".
Ou então aquela choradeira que há mais de 15 anos gourmetiza a mediocridade vergonhosa do "funk".
Só que tudo isso é "visão de bolha social", fantasias teóricas que só têm sentido para quem acha que o próprio umbigo é o único juiz confiável da realidade vivida.
No calor dos hormônios juvenis, todo achismo se torna "verdade absoluta". Até que o tempo vai mostrar o quanto a mediocridade cultural endeusada não foi tão relevante quanto o calor do momento, com certo exagero, supunha.
E aí o tempo vai dizer se o período atual foi ou não culturalmente bom para o Brasil. A tendência é que faça uma avaliação não muito generosa dos tempos confusos de hoje em dia.
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