O que é o chamado "mau gosto popular"?
Uma reação do povo pobre contra a supremacia do "bom gosto" elitista virando de cabeça para baixo os valores sociais?
Não.
Não se trata de um combate, até porque poucos conseguem perceber uma coisa.
Os barões da mídia, os chefões do mercado e até mesmo os midiotas sempre aceitaram e apreciaram o "mau gosto popular".
Ele é como um outro lado da moeda do "bom gosto elitista".
E tenta apagar o tempo em que favelas, sertões e roças produziam cultura de qualidade, quando o valor artístico independia desse maniqueísmo "alta cultura rica / baixa cultura pobre".
Tempos em que havia Jackson do Pandeiro, Cartola, Marinês e Sua Gente, Luís Gonzaga, Pixinguinha, Carolina Maria de Jesus, gente pobre e de excelente cultura.
Gente visceral, de expressão orgânica, na qual a ideia de dignidade não dependia de comprovante de renda.
Muito diferente desse "popular demais" e suas baixarias estimuladas para o alto consumo, até mesmo das elites.
O "popular demais" do brega-popularesco, com suas expressões de "gosto duvidoso" nem de longe representam uma ameaça ao plutocrático gosto pela "alta cultura".
É só perceber quem apoia essa supremacia do "mau gosto".
A Rede Globo acolheu a bregalização, antes privativa das emissoras de TV concorrentes, com muito gosto.
Tanto que tentou maquiar os "pagodeiros" e "sertanejos" da Era Collor, já no final dos anos 90, como a "MPB de mentirinha" que repete os piores aspectos associados a uma MPB aristocratizada.
Nomes do "pagode romântico" e do "sertanejo" com trajes de gala, banho de loja, cenários pomposos, gravando covers radiofônicos da mesma MPB criticada por intelectuais da moda.
Gente falando de baratas e relações de "tapas e beijos" e que passava a imitar justamente as fórmulas desgastadas da MPB pasteurizada.
A própria Rede Globo, que castrou a MPB com as trilhas sonoras de novelas, deu essa cosmética tardia aos ídolos "populares demais" de 1990.
Isso puxou a "cultura" de um pseudo-popular que não pode ser visto como a antítese do elitismo erudito.
Até porque são justamente as elites que mais apreciam esse "popular demais", que em contrapartida constrange muita gente das favelas.
É um "popular" falso de glúteos rodopiantes, caubóis estereotipados, letras sobre brigas amorosas exageradas, bebedeira e falsos protestos das "periferias".
Ou de musas siliconadas se autoproclamando "feministas" e grosseiros apresentadores policialescos se autoafirmando "grandes comunicadores".
Isso não traz contraponto algum ao eruditismo viciado das elites. Pelo contrário.
Vejam o cardápio musical dos condomínios de luxo nas áreas nobres do Grande Rio e da Grande São Paulo.
"Sertanejo universitário", "funk", "forró eletrônico", "pagode romântico" e outros estilos "das periferias" animam, com muito gosto, os ouvidos, corações e mentes da gente bem nascida e bem alimentada (com açaí, anabolizantes, pinga, cerveja, nicotina e os "bauretes").
O "funk", tão definido como "antielitista", é patrocinado por um dos maiores aristocratas do Brasil, ninguém menos que Luciano Huck, apresentador-empresário amigo de Aécio Neves.
A própria Furacão 2000, bem antes de declarar $olidariedade a Dilma Rousseff, elegeu o apresentador do Caldeirão do Huck (daí a gíria "é o caldeirão", "é o máximo") para ser "embaixador do funk".
Os midiotas do Facebook, do Twitter, do YouTube e até do antigo Orkut sempre fizeram "patrulha" contra quem questionasse a bregalização avassaladora do "popular demais".
Era o mito preconceituoso, mas "sem preconceitos", de comparar a "descida das favelas na sociedade civilizada" como um derramamento de entulho num ambiente de limpidez.
Se "positivam" as baixarias e retrocessos morais como se fossem inerentes ao povo pobre.
O que vemos no "sertanejo", "funk" e similares não é o povo pobre de verdade.
O verdadeiro povo pobre está no ativismo social, lutando por reforma agrária, qualidade de vida, musicalmente esperando por artistas viscerais que as "FMs do povão" controladas por oligarquias nunca irão tocar.
Os midiotas poderiam montar até uma coletânea dos cantores e conjuntos que defendiam com seu "patrulhamento" nervoso e dirigista.
Zezé di Camargo & Luciano, Alexandre Pires, Bell Marques, Mr. Catra, Tati Quebra-Barraco, Wesley Safadão, Aviões do Forró, Anitta, Luan Santana, João Bosco & Vinícius e até Michael Sullivan!
Reúna tudo isso num disco da Som Livre e a Globo lança imediatamente e com prazer. Até João Roberto Marinho reagiria com seu habitual sorriso paternal.
O "popular demais" foi criação da plutocracia do entretenimento, que encheu de dinheiro antigos capatazes interioranos que montaram suas "modestas" e "empobrecidas" empresas de entretenimento.
Que estão por aí, acusadas não só de jabaculê, mas às vezes por estelionato, desvio de dinheiro público e até por parasitar as verbas da Lei Rouanet.
Não bastasse o apoio que recebem de políticos de direita mais provincianos ou mesmo de sanguinários proprietários de latifúndios.
São eles que ditam o "gosto popular", como se jogassem debaixo do tapete questões mais complexas do que a da "supremacia do bom gosto".
Isso porque o "mau gosto" revela um preconceito muito pior, e mais grave porque ele é tido como "sem preconceitos".
Que é considerar que o povo pobre só é "melhor" naquilo que ele tem de pior.
Prostituição, subemprego, embriaguez, obsessão pelo pitoresco, valores retrógrados, tudo isso é visto como "padrão de qualidade de vida" do povo pobre e suposto contraponto ao "bom gosto elitista".
Até porque são dois lados da mesma moeda.
E quem "aprimora" os músicos popularescos, as mulheres siliconadas, os âncoras policialescos e outras espécies do mesmo nível são sempre as elites.
Aceita-se o lixo cultural supostamente associado às classes populares e depois as elites é que intervém para "melhorar" tudo isso.
No fundo o brega nunca passou dessa relação mal-resolvida entre o "bom gosto elitista", o colonialismo cultural e o quadro de ignorância e miséria nas classes populares.
E se esse suposto reconhecimento do "valor positivo" da baixaria, do grotesco e do pitoresco "popular" depende sempre da aceitação das elites, isso mostra um grau de preconceito muito cruel.
É considerar que o povo pobre é só isso que aparece nas rádios e TVs, ou mesmo num YouTube que é reflexo dessa mesma "educação" midiática.
E considerar que a única salvação para "aprimorar" essa "cultura" está sempre nas elites.
Daí que o "popular demais" não passa de um gancho para fazer o "bom gosto elitista" parecer "a salvação da lavoura".
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