O fim anunciado da Rádio Cidade é algo para pensar com muita cautela.
A rádio não acabou por causa de campanhas negativas de toda espécie.
Ela até tinha uma blindagem que nem a antiga Fluminense FM havia tido no seu auge.
Os saudosos da "Maldita" encaravam a Rádio Cidade com uma certa condescendência.
A Rádio Cidade poderia até ser chamada de "Bendita", em oposição à alcunha da Fluminense.
Era badalada demais, blindada como nenhuma rádio de rock autêntica conseguiu ser.
E olha que a Rádio Cidade era canastrona.
Sua imagem "roqueira" era apenas uma propaganda enganosa.
A rádio tinha um QI de FM pop convencional, e tinha dificuldades de se livrar dessa mentalidade.
Afinal, sua equipe, a começar pelo coordenador Van Damme, não era especializada em rock.
O contato deles com o rock era medido pelo cartão de ponto do horário de trabalho.
Terminado o experiente, os radialistas partiam para outra coisa: axé-music, pop dançante, "sertanejo", até "funk".
Rock'n'roll não.
Daí o grande problema. Os radialistas da Rádio Cidade não tinham feeling para sentir o que vale a pena tocar de novo ou inusitado no rock.
Essa é a vantagem de quem entende de rock, que é capaz de mostrar, além dos grandes sucessos, outras músicas mais interessantes.
Daí o mal das rádios comerciais dedicadas ao rock.
Os coordenadores ficam de braços cruzados sonhando em ver a sala de espera na sede da rádio cheia de roqueiros fazendo consultoria informal.
Em outras palavras, os radialistas esperavam que ouvintes roqueiros aparecessem aos montes querendo dar sugestões e macetes para a programação da rádio.
Coisas do tipo "esse tipo de programa não combina", "você não pode tocar apenas essa música, tem outra que nunca fez sucesso e é boa", "os locutores têm que maneirar no timbre porque aqui não é FM de menudos" ou coisa parecida.
Seria estressante demais, porque nem sempre todas as sugestões serão acatadas de forma esperada.
É mais ou menos você juntar um povo e dizer para Michel Temer governar igualzinho Dilma Rousseff.
Você pode dizer até que Michel Temer deveria olhar para os trabalhadores e melhorar a questão salarial, mas ele tem uma visão antagônica à das classes populares.
Na rádio comercial dita roqueira, o coordenador também tem sua visão hit-parade, só vai acolher uma parte das sugestões e olhe lá.
Ele não vai, por exemplo, jogar na programação diária uma música melancólica, mas clássico do rock, como "All Tomorrow's Parties", do Velvet Underground.
Ou tocar coisas sombrias como "Isolation", do Joy Division.
Isso ninguém percebe, mas a resignação que atinge o Rio de Janeiro ultimamente faz sentido.
A Rádio Cidade, da banda The Cult, só tocava "Revolution", tendo tão somente "She Sells Sanctuary" como "reserva" para alavancar audiência, e o pessoal ficava babando.
É aquele ditado da terra de cego, bastante popular, e que faz de qualquer medíocre um gênio.
A programação da Rádio Cidade era tão ruim que não era capaz sequer de lançar por conta própria uma cena de rock consistente e vibrante.
Com uma equipe nada especializada - felizmente os críticos musicais de O Globo admitem que a Cidade era apenas "dedicada", e não "especializada", ao rock - , não havia sequer um faro para sentir o talento de novas bandas e articular uma interação entre elas num cenário musical próprio.
Foi isso que se tornou a maior qualidade da Fluminense FM.
Em seis meses de existência, já no segundo semestre de 1982, a Flu FM articulou vários grupos e cantores de rock para criar uma cena, escolhendo o Circo Voador como ponto de encontro.
Lançava demos de bandas realmente talentosas, hoje bastante conhecidas, mas também outros hoje pouco lembrados, como Bacamarte e os falecidos Malu Vianna e Celso Blues Boy.
E a Rádio Cidade? Em seis meses de retorno, a emissora não aglutinou uma cena sequer, e dependeu de um reality show musical da Rede Globo para lançar novas bandas.
As únicas "novidades" eram Suricato e Scalene, que faziam o mais-do-mesmo do roquinho do cenário anos 90 pós-Raimundos e pós-Mamonas.
E ainda houve o relançamento de Tianastácia, já manjado pelos ouvintes da Cidade uns 15 anos atrás.
Gente muito mais preocupada em fazer boas fotos, ter um bom empresário, mas sem um repertório musical orgânico, visceral e empolgante.
Isso tudo se deve porque ninguém é roqueiro entre os radialistas envolvidos.
Não se fala de programas específicos, em muitos casos produções independentes, como os de José Roberto Mahr, que constantemente entram na programação sob arrendamento de horário.
No grosso, a Rádio Cidade era composta somente de radialistas que estavam na emissora quando ela adotava a franquia Jovem Pan, mais um coordenador vindo da breguíssima Beat 98 e alguns profissionais não aproveitados pela FM O Dia, do mesmo Sistema RJ da Cidade.
Gente mais preocupada em contar piadas do que em mostrar bandas de rock.
Aventureiros radiofônicos desses que embarcam em qualquer novidade arrojada, muitas vezes sem saber do que se trata.
E aí eles viram os "profissionais de rock", termo pejorativo dado a radialistas que só embarcam no rock como profissão, mas na vida pessoal nem querem saber do gênero.
Houve muitos e muitos problemas na trajetória "roqueira" da Rádio Cidade.
Problemas gravíssimos para uma rádio frustrada em não ter a reputação da Fluminense FM.
E que era beneficiada por uma blindagem que a Flu FM não tinha, mas mesmo assim isso não era reconhecimento de competência e talento.
Até porque as pessoas evitavam criticar a programação da Rádio Cidade. Mas também não ouviam a emissora.
Os roqueiros autênticos não iriam ligar a emissora para ouvir os hits roqueiros que eles cansaram de ouvir.
Eles estão noutra. Enquanto a Rádio Cidade tocava "Smoke on the Water" do Deep Purple, e só ela, os fãs do grupo britânico estavam garimpando as mais obscuras raridades.
Enquanto a Cidade lançava o Queens of the Stone Age como o "supra-sumo do alternativo", os roqueiros autênticos já garimpavam no YouTube bandas com menos de 1/4 da popularidade da banda de Josh Homme e companhia.
Enquanto a Cidade tocava Raimundos, os roqueiros autênticos se relembravam de Fellini e Voluntários da Pátria.
Não havia como dar certo.
Agora a vez é aceitar o fim da Rádio Cidade, esperar julho terminar e determinar sua trajetória como passada.
Aprender com os ouvintes da Fluminense, que hoje aceitam a impossibilidade dela retornar ao FM.
Ter humildade e reconhecer os erros, fraquezas e impotências da Rádio Cidade na cultura rock.
E, em seguida, repensar o radialismo rock e desejar uma nova trajetória, sem os vícios que queimaram os 102,9 mhz do RJ.
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