O artigo é até bem intencionado, mas segue a recomendação editorial de vincular o "funk carioca", entre aspas, ao funk autêntico.
Sabemos que esse vínculo é muito, muito forçado.
O chamado "batidão", como é o "funk carioca" lançado em 1990, havia rompido com as lições do funk autêntico original.
Foram os grandes DJs e animadores da black music carioca morrerem, como Cidinho Cambalhota, Ademir Lemos e Messiê Limá, discípulos de Newton "Big Boy " Duarte morrerem, para seus pupilos chutarem o pau da barraca e iniciarem uma corrida maluca pelo dinheiro.
Reduziram o legado do funk autêntico a um primário e simplório karaokê de MCs com voz esganiçada.
A única "melodia" possível não passava de paródias de cantiga de roda.
Tinha até "Atirei o Pau no Gato" adaptado a uma letra de "funk".
O som era considerado risível nos anos 1990, tal era seu caráter tosco.
Mas hoje esse mesmo som é considerado "canção de protesto".
Falam que é por causa do tal "fim do preconceito", mas, analisando profundamente, esse "protesto" é tão inócuo que se botasse um "funk" no desfile de Sete de Setembro do começo dos anos 1970, os envolvidos só seriam presos por indisciplina, e não por "subversão ao regime".
O próprio "funk", influenciado pelo miami bass, não poderia ser considerado ameaça aos interesses da ditadura militar.
O "funk" fala o mesmo idioma da plutocracia americanófila e aborda a mesma imagem de povo pobre que os investidores estrangeiros gostariam que prevalecesse.
Uma imagem bem mais caricatural do que chanchadas da Atlântida, já que o povo pobre, neste caso, passava uma imagem "alienada", porém sociologicamente verossímil.
Agora, com toda a desesperada blindagem em torno do "funk", o portal da famiglia Frias, o UOL, tenta juntar os pedaços rasgados.
De repente, uma genial banda de funk autêntico, do Rio de Janeiro, a Banda Black Rio (foto acima), e artistas grandiosos como Gerson King Kombo e Tony Tornado (atualmente no elenco do humorístico Zorra, da Rede Globo), são agora "referência" para o "funk carioca".
Em 1990 não era assim. O hoje chamado "funk de raiz" ficava ensimesmado no simplório som de uma batida eletrônica e uma voz (tosca e ruim) de um MC.
O MC não podia tocar gaita, tocar violão ou guitarra ou acrescentar algum som naquela estrutura tosca e brutal. Seu único "instrumento" era o microfone.
O "funk carioca" primou pelo excessivo rigor estético, ainda que nivelado por baixo, para produzir uma "imagem" do povo pobre que agradasse ao mercado e à sociedade paternalistas.
Comparando com o samba e o rock, é um dado vergonhoso.
O samba sempre marcou pelo instrumental forte, pela vibração musical plena, pela força das canções e por melodias que haviam mesmo quando o ritmo é que predominava, através dos batuques.
O samba brasileiro acolheu o violão, a viola, o cavaquinho e até o banjo, que muitos pensam ser tão somente um instrumento do country estadunidense.
O rock simplificou a estrutura musical do jazz, mas sempre foi aberto a todo tipo de instrumento.
Os primeiros sucessos do rock contavam com acompanhamento de metais e, não obstante, até de instrumentos de cordas.
E, em menos de dez anos de sucesso, víamos exemplos arrojados como, em 1960, uma vocalista de apoio de Bo Diddley ser também guitarrista.
Em quinze anos o MC do "funk" não havia aparecido tocando regularmente um instrumento musical.
Alguém sabe de uma instrumentista entre as "abusadas" de Leandro e As Abusadas?
Isso é uma aberração se percebermos que a black music brasileira sempre marcou pelo instrumental forte.
A Banda Black Rio era um conjunto basicamente instrumental, mas também instrumentistas acompanhavam cantores solo, como Gerson e Tornado.
O próprio Tim Maia tinha uma banda e orquestra, Vitória Régia, com uma grande sessão de metais e de cordas.
Tim Maia era até considerado chato com tanta preocupação com a qualidade musical.
Ele pensava como um maestro, um arranjador, tinha um ouvido apurado e, mesmo quando não tocava instrumentos, sempre estava atento.
Se um solo do guitarrista saísse do tom e se não houvesse harmonia de violinos e violoncelos, Tim se aborrecia e reclamava.
Neste sentido, Tim Maia era o "João Gilberto" do soul, sempre exigente com a acústica e a qualidade instrumental. Música em primeiro lugar.
Hoje, infelizmente, muitos intelectuais, até mesmo por boa-fé, imaginam a música não como música, mas como "comportamento".
Aquele que arrancar mais vaias de setores elitistas da sociedade vira "gênio", vira "herói" da temporada, símbolo de qualquer ideia triunfante.
Ninguém se atenta que muito do que se rotula como "vanguarda" hoje não passa de uma busca desesperada por alguém que tão somente incomodasse os almoços das famílias abastadas.
Seja um branquelo com cabelo black power fazendo um pastiche de sambalanço com sctratch ruim de hip hop - desses em que o DJ apenas "esfrega" o vinil na vitrola - , seja uma mulher pouco atrativa e enfezada, que mostra seios na rua ou fala mal de ex-namorados.
E isso mostra o provincianismo que virou pandemia em todo o Brasil.
Isso porque cantora enfezada falando mal de ex-namorados ou exibindo os seios nus até para a polícia são coisas previsíveis até no mainstream do mainstream do mainstream do pop estadunidense.
Tem muita gente preocupada em "incomodar", "assustar", "sacudir", mas se esquece de parar um momento e compor uma música que preste.
Mas, paciência, são poucos os brasileiros que prestam atenção na música.
Muitos são apressados em procurar a próxima mina de ouro no primeiro terreno baldio que estiver à sua frente.
A intelectualidade apressada e sem tempo para ouvir música com atenção já procurou novos Jackson do Pandeiro, João Gilberto e Elza Soares em qualquer medíocre de plantão.
A ideia é falar mal de namorado, elogiar a favela, criticar a polícia, lançar expressões tolas como "lepo-lepo" e incomodar os almoços nos condomínios de luxo.
No entanto, se esquece que a música não tem valor sem a música.
Boa música, assim como não é aquela que necessariamente, comove as pessoas com "boas mensagens", também não é aquela que necessariamente incomoda as elites estabelecidas.
Se esquecendo da música, fica fácil pedir para jornalistas que até conhecem bem música forçarem um vínculo entre o funk autêntico original e o "funk carioca".
Pode não ser a intenção do jornalista, mas é a do editor-chefe.
Em se tratando do UOL, propriedade da famiglia Frias, faz sentido.
Otávio Frias Filho é um dos artífices da imagem do "funk carioca" como "ativismo cultural".
Através dele e da Rede Globo, a espetacularização da pobreza se deu ao som do "pancadão".
O que nada tinha a ver com o antigo funk autêntico. Esse sim, musicalmente forte e, em atitude, mais comportado, sóbrio, e sem apologia à ignorância, à violência nem a valores retrógrados.
Não havia baixaria no funk autêntico.
Daí não fazer sentido associar o "funk carioca" pós-1990 ao rico cenário black carioca dos anos 1970.
Um copo quebrado não se recompõe colando os pedaços. Não vira mais um copo inteiro.
Sempre haverá a marca de uma rachadura.
O "funk carioca" de hoje e seus derivados tentam acolher várias linguagens musicais, samplear trumpete, violoncelo, botar MC para tocar violão, gaita, percussão.
Tarde demais. O "funk" tenta agora reunir os cacos de um vidro que quebrou de propósito.
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