Ontem, o grande mestre Milton Nascimento completou 80 anos. Isso é bom e ruim. Bom, porque temos, ainda vivo, um dos grandes nomes da MPB. Ruim, porque não há um novo nome com visibilidade e talento comparáveis que possa renovar o legado do grande cantor e compositor.
Temos um cenário cultural brasileiro tão catastrófico, apesar das "bolhas culturais" felizes por consumir cultura de qualidade, não só musical mas também cinematográfica, literária, teatral etc, que temos uma falsa onda de saudosismo plantada por influenciadores digitais e jornalistas culturais isentões, uma pretensa nostalgia que mal consegue disfarçar interesses comerciais estratégicos.
Já se fala em promover falsa nostalgia do chamado "funk dos anos 2000", comemorando duas décadas de muita choradeira intelectual pretensamente "contra o preconceito". É mais um artigo a se somar ao desastroso "vintage" que a "boa sociedade" arma, com a grande mídia e as redes sociais difundindo com tolo entusiasmo.
Trata-se de uma versão deturpada de uma tendência que ocorre lá fora, que é a da nostalgia vintage realmente relevante. Claro que existem surtos saudosistas que supervalorizam o pop comercial dos anos 1980 e 1990 - vendidos pelas rádios de pop adulto brasileiras como "coisa de outro mundo" - , mas lá fora nomes como Laura Nyro, Todd Rundgren, Gentle Giant e Buzzcocks são bem lembrados.
E aqui? O que é "vintage" aqui? Gretchen? Michael Sullivan? Trem da Alegria? Bell Marques? Chitãozinho & Xororó com "Evidências"? Ou o elenco de bregas dos anos 1970 que certa vez apareceram no Altas Horas da Rede Globo? Como se não bastasse o constrangedor projeto Ploc 80 dos anos 2000, numa época em que tudo que era antigo era "anos 80", até mesmo o Cadillac 1955, que colocou o saudosismo no mapa da imbecilização cultural brasileira.
Entramos num período de positividade tóxica de uma possível nova Era Lula, e muita gente sonha que chuvas de dinheiro trarão talento de graça para os ídolos musicais medíocres e as subcelebridades em geral, na esperança de tornar a canastrice mais "artística" e "criativa", na zona de conforto de manter sempre o mesmo elenco de famosos que aparecem nas páginas de entretenimento na Internet e nas redes sociais.
Isso é horrível. E, na carona disso tudo, temos a falsa bússola do brega-vintage que a imprensa cultural "isentona" trabalha, em mais uma reforma das redações, que na época de Temer demitiu um monte de profissionais, fundiu editorias, extinguiu revistas e jornais impressos (enquanto "livros para colorir" continuam desperdiçando grandes quantidades de papel nas gráficas) e agora substituíram o teclado do computador pela flanela, para a nova função da editoria de Cultura: a de passar pano na mediocridade vigente.
É um saudosismo tosco, sem pé nem cabeça e um tanto solipsista, que, de maneira estúpida, é capaz de definir um sucesso musical medíocre como "clássico" porque lembra um momento pessoal daquele que ouviu essa música. Se o rapagão transou com cinco garotas ao mesmo tempo enquanto ouviu "Whisky a Go-Go" nos anos 1980, o sujeito vai definir essa canção de Sullivan & Massadas, interpretada por um Roupa Nova entregue ao comercialismo, como "clássico".
Essa visão provinciana e matuta, essa forma vira-lata de saudosismo, tornou-se "pegadinha" até para atrizes desavisadas que arriscam uma atividade musical. Cléo Pires tentou uma carreira musical como uma espécie de resposta brega à Lana Del Rey, com pitadas de "funk" e tecnobrega. Carolina Dieckman tem seu projeto "Karolkê", que se vende como "descolado" tocando sucessos brega-popularescos do nível de "Fogo e Paixão", do "colecionador de calcinhas" Wando.
É constrangedor tudo isso, assim como ver influenciadores digitais reabilitando Michael Sullivan. Se esquecem que o ambicioso compositor e produtor brega quis destruir a MPB, mas recorreu a ela quando quis retomar a carreira, fazendo pose de coitadinho mostrando vitimismo. É vergonhoso isso, num país em que as esquerdas acolhem um Geraldo Alckmin que nunca pediu desculpas ao povo de Pinheirinho (bairro popular de São José dos Campos) pela repressão e destruição da comunidade.
Não estamos vivendo um bom momento e o viralatismo cultural não pode ser colocado apenas na conta dos bolsonaristas. Eles são fruto, sim, desse culturalismo vira-lata, mas devemos nos lembrar que até as esquerdas contribuíram com a ascensão de Sérgio Moro e Jair Bolsonaro, ao darem ouvidos a intelectuais pró-brega supostamente esquerdistas mas que, glamourizando a idiotização cultural sob a desculpa do "combate ao preconceito" (ver Esses Intelectuais Pertinentes...), criou condições para o período golpista iniciado em 2016.
O brega-vintage está mais para vomitage do que para vintage. E toda essa discurseira de "não-comercial", "vanguarda" e "clássico" para os sucessos popularescos do passado, numa apreciação que mistura trash com politicamente correto, só tem como objetivo recuperar o êxito comercial dos antigos ídolos popularescos, ainda que estes se fantasiem de "anti-comerciais". Nada pela cultura, tudo por dinheiro.
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