Pular para o conteúdo principal

BRASIL VIVE SUA VERSÃO DOS 'ROARING TWENTIES'

PROTESTO CONTRA A LEI SECA NOS EUA E FESTAS NOTURNAS NA TERRA DE TIO SAM - Os loucos anos 1920 cujo desfecho foi a Crise de 1929.

Em 2008, eu li o livro A Crise de 1929, de Bernard Gazier, quando ia para a livraria Saraiva, no Salvador Shopping, na capital baiana, nos últimos meses em que morei na cidade desde 1990. Pude entender o período dos "loucos anos 1920" - que no original se chamam Roaring Twenties, traduzido ao pé-da-letra como "Ruidosos Anos Vinte" - , um estado de euforia social vivido pelos estadunidenses há um século atrás.

Observando bem o que o Brasil de Lula 3.0 hoje representa, nosso país está vivendo a versão local dos "loucos anos 1920", uma época de euforia social, com hedonismo obsessivo e um apetite voraz por consumismo, emoções baratas e diversão em excesso.

Nos EUA, esse clima de euforia só era interrompido pela Lei Seca, que proibia a produção, distribuição e comercialização de bebida alcoólica no país, o que fazia as organizações mafiosas investirem no comércio clandestino, num cenário marcado por intensa violência. Mas, fora isso, os "loucos anos 1920" foram marcados por uma euforia consumista dos estadunidenses que gerou um apetite exagerado que resultou em péssimas consequências.

Afinal, as pessoas que ganhavam fácil nas loterias e nos demais jogos de azar torravam dinheiro em muita curtição e bens supérfluos. Pessoas também compravam ações na bolsa de valores de Wall Street, em Nova York, acreditando no enriquecimento fácil.

Essa euforia era descontrolada, as pessoas empolgadas com sua capacidade plena de consumo, diversão e hedonismo, e não havia como criticar nem contestar esse clima de aparente otimismo e liberdade, algo que encontrou similaridade no Brasil de hoje que, curiosamente, vivia, naqueles anos 1920, o apogeu da República Velha.

Atualmente, no Brasil, os "loucos anos 2020" foram inaugurados com o fim oficial da pandemia da Covid-19 e a derrota eleitoral do bolsonarismo, com a chamada "sociedade democrática" - na verdade, a chamada elite do bom atraso e seus séquitos - esbanjando hedonismo levado às últimas consequências, numa histeria nunca antes vista na História do nosso Brasil.

A trilha sonora dos "loucos anos 2020" brasileiros é bastante inferior à dos "loucos anos 1920" dos EUA. Naquela época, a música era o jazz, então em sua fase primitiva, começando a se desvincular, sonoramente, do blues, uma música considerada "vulgar" e "lasciva", mas que tinha sua qualidade musical notável, sua preocupação instrumental e musical, ainda que longe das ousadias de três décadas depois.

No Brasil, os ritmos brega-popularescos é que ditam a trilha sonora, e, embora se utilizem as mesmas desculpas chorosas para a rejeição intelectual a essas tendências, a qualidade musical e o valor artístico são realmente deploráveis e o interesse comercial tão explícito quanto o de qualquer banco de investimentos do porte de um Banco Safra ou BTG Pactual. 

O trap, o "funk", o piseiro, o arrocha, tudo isso não passa de meros karaokês cuja base sonora é praticamente uma só em cada gênero, e a baixa qualidade musical é gritante, por mais que nossa intelligentzia diga, no seu "bom" juízo de valor etnocêntrico, que "é isso o que o povo pobre sabe fazer". Se esquecem os "admiráveis" intelectuais "bacanas" que tivemos exemplos de Cartola, Pixinguinha, Luís Gonzaga e Elza Soares, todos de origem humilde e musicalmente vigorosos e brilhantes.

Mas fora isso o apetite consumista é igual entre os EUA dos anos 1920 e o Brasil atual, com a diferença de que bens como automóveis e televisão são mais acessíveis no Brasil de hoje, enquanto, nos EUA de 1920, automóvel era bem de luxo e a televisão começava a ser demonstrada em um evento tecnológico de 1926, no Reino Unido, pelo engenheiro escocês John Logie Baird, e, em 1927, os EUA teriam amostra semelhante por Philo Taylor Farnsworth, inventor e fundador da famosa empresa Philco.

No Brasil dos anos 2020, as pessoas estão consumindo cerveja em quantidades industriais, de forma que, se implantasse a Lei Seca, haveria muito quebra-quebra em todo o país e as milícias aumentariam seu poder explorando o comércio clandestino de bebidas alcoólicas. Para o bem da tal paz social, se mantém o consumo obsessivo dessa bebida cancerígena e dopante e super-ricos como Jorge Paulo Lemann são poupados de taxação por ter se tornado "amiguinho" do governo Lula.

As pessoas que, no Brasil, ganham a sorte grande fácil demais e sem necessidade acabam gastando com supérfluos, comprando TVs e automóveis para cada membro da família, só faltando dar automóvel para crianças e cachorros dirigirem. O apetite pelo supérfluo, pelo fútil, chega ao ponto de haver gente que alega "não" ter dinheiro para ajudar o próximo, mas quando se trata de comprar cigarros a grana, e das boas e bem fartas, "aparece" no bolso como que por milagre.

A euforia também apela para um ideal de aparente liberdade e hedonismo sem limites. Daí que muitos estranham quando este blogue diz que o governo Lula conseguiu desenvolver um cenário de conformismo popular que o AI-5 da ditadura militar não conseguiu realizar.

A estranheza se deve porque citar o AI-5 ou o DOI-CODI - quando este blogue falou que o conformismo social atual faria os antigos torturadores ficarem boquiabertos com tamanha passividade - soa inadequado para o raciocínio binário da elite do bom atraso, que mesmo vivendo o que hoje podemos definir como uma repaginação do "milagre brasileiro", tem que ser entendido oficialmente como uma "democracia socialista".

Tudo é festa, tudo é gente contando piadas sobre seu cotidiano pessoal, tudo é euforia pelo enriquecimento fácil, pelo sonho de ver o Brasil tornado potência mundial, pela frequência frenética de shows e eventos internacionais, pelas oportunidades de consumo pleno, pelas possibilidades da "boa" sociedade viajar ou viver no exterior, pela supremacia da música fácil dos ídolos popularescos, pela obsessão extrema pelo futebol, pela religiosidade como forma de recarregar as energias gastas pelos excessos do "Carne-vale" à brasileira de hoje.

Consumismo frenético, gente fazendo compras que nem loucos, principalmente durante efemérides, pessoas fazendo festas todo fim de semana, causando congestionamentos com seus carros comprados aos montes, indo para todo tipo de evento de entretenimento. Patéticos parquiletes instalados nas ruas como currais humanos atrapalhando a mobilidade urbana e, pasmem, até o tráfego de veículos, veja que insanidade!

E há a prioridade para pessoas passarem as madrugadas fazendo barulho, com festas, risadas altas, expondo suas vidas privadas em conversas altas, sem o menor escrúpulo em perturbar o sono de quem quer dormir para acordar cedo, mesmo que seja para fazer uma caminhada num domingo. A felicidade tóxica primeiro, a qualidade de vida se deixa pra depois ou nunca mais. O outro que tente dormir com uma barulheira dessas.

A euforia dos "loucos anos 1920" dos EUA, depois de atingir níveis máximos, abriu caminho para o colapso econômico da Crise de 1929, com a quebra de ações na Bolsa de Wall Street, que gerou uma violenta crise mundial que, dizem, refletiu até na Segunda Guerra Mundial.

Com o quadro loucamente histérico dos roaring twenties brasileiros, através da euforia cega e sem freio de uma parcela abastada de brasileiros, qual desfecho ocorrerá? Sabe-se que esse momento terá fim e brasileiro costuma ser bom de festa, mas ruim de ressaca. O problema é que essa ressaca pode ser milhões de vezes mais dolorosa do que se pode imaginar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

RELIGIÃO DO AMOR?

Vejam como são as coisas, para uma sociedade que acha que os males da religião se concentram no neopentecostalismo. Um crime ocorrido num “centro espírita” de São Luís, no Maranhão, mostra o quanto o rótulo de “kardecismo” esconde um lodo que faz da dita “religião do amor” um verdadeiro umbral. No “centro espírita” Yasmin, a neta da diretora da casa, juntamente com seu namorado, foram assaltar a instituição. Os tios da jovem reagiram e, no tiroteio, o jovem casal e um dos tios morreram. Houve outros casos ao longo dos últimos anos. Na Taquara, no Rio de Janeiro, um suposto “médium” do Lar Frei Luiz foi misteriosamente assassinado. O “médium” era conhecido por fraudes de materialização, se passando por um suposto médico usando fantasias árabes de Carnaval, mas esse incidente não tem relação com o crime, ocorrido há mais de dez anos. Tivemos também um suposto latrocínio que tirou a vida de um dirigente de um “centro espírita” do Barreto, em Niterói, Estado do Rio de Janeiro. Houve incênd...

INFANTILIZAÇÃO E ADULTIZAÇÃO

A sociedade brasileira vive uma situação estranha, sob todos os aspectos. Temos uma elite infantilizada, com pessoas de 18 a 25 anos mostrando um forte semblante infantil, diferente do que eu via há cerca de 45 anos, quando via pessoas de 22 anos que me pareciam “plenamente adultas”. É um cenário em que a infantilizada sociedade woke brasileira, que chega a definir os inócuos e tolos sucessos “Ilariê” e “Xibom Bom Bom” cono canções de protesto e define como “Bob Dylan da Central” o Odair José, na verdade o “Pat Boone dos Jardins”, apostar num idoso doente de 80 anos para conduzir o futuro do Brasil. A denúncia recente do influenciador e humorista Felca sobre a adultização de menores do ídolo do brega-funk Hytalo Santos, que foi preso enquanto planejava fugir do Brasil, é apenas uma pequena parte de um contexto muito complexo de um colapso etário muito grande. Isso inclui até mesmo uma geração de empresários e profissionais liberais que, cerca de duas décadas atrás, viraram os queridões...

LULA GLOBALIZOU A POLARIZAÇÃO

LULA SE CONSIDERA O "DONO" DA DEMOCRACIA. Não é segredo algum, aqui neste blogue, que o terceiro mandato de Lula está mais para propaganda do que para gestão. Um mandato medíocre, que tenta parecer grandioso por fora, através de simulacros que são factoides governamentais, como os tais “recordes históricos” que, de tão fáceis, imediatos e fantásticos demais para um país que estava em ruínas, soam ótimos demais para serem verdades. Lula só empolga a bolha de seus seguidores, o Clube de Assinantes VIP do Lulismo, que quer monopolizar as narrativas nas redes sociais. E fazendo da política externa seu palco e seu palanque, Lula aposta na democracia de um homem só e na soberania de si mesmo, para o delírio da burguesia ilustrada que se tornou a sua base de apoio. Só mesmo sendo um burguês enrustido, mesmo aquele que capricha no seu fingimento de "pobreza", para aplaudir diante de Lula bancando o "dono" da democracia. Lula participou da Assembleia Geral da ONU e...

LUÍS INÁCIO SUPERSTAR

Não podemos estragar a brincadeira. Imagine, nós, submetidos aos fatos concretos e respirando o ar nem sempre agradável da realidade, termos que desmascarar o mundo de faz-de-conta do lulismo. A burguesia ilustrada fingindo ser pobre e Lula pelego fingindo governar pelos miseráveis. Nas redes sociais, o que vale é a fantasia, o mundo paralelo, o reino encantado do agradável, que ganha status de “verdade” se obtém lacração na Internet e reconhecimento pela mídia patronal. Lula tornou-se o queridinho das esquerdas festivas, atualmente denominadas woke , e de uma burguesia flexível em busca de tudo que lhe pareça “legal”, daí o rótulo “tudo de bom”. Mas o petista é visto com desconfiança pelas classes populares que, descontando os “pobres de novela”, não se sentem beneficiadas por um governo que dá pouco aos pobres, sem tirar muito dos ricos. A aparente “alta popularidade” de Lula só empolga a “boa” sociedade que domina as narrativas nas redes sociais. Lula só garante apoio a quem já está...

DENÚNCIA GRAVE: "MÉDIUM" TIDO COMO "SÍMBOLO DE AMOR E FRATERNIDADE" COLABOROU COM A DITADURA

O famoso "médium" que é conhecido como "símbolo maior de amor e fraternidade", que "viveu apenas pela dedicação ao próximo" e era tido como "lápis de Deus" foi um colaborador perigoso da ditadura militar. Não vou dizer o nome desse sujeito, para não trazer más energias. Mas ele era de Minas Gerais e foi conhecido por usar perucas e ternos cafonas, óculos escuros e por defender ideias ultraconservadoras calcadas no princípio de que "devemos aceitar os infortúnios e agradecer a Deus pela desgraça obtida". O pretexto era que, aceitando o sofrimento "sem queixumes", se obterá as prometidas "bênçãos divinas". Sádico, o "bondoso homem" - que muitos chegaram a enfiar a palavra "Amor" como um suposto sobrenome - dizia que as "bênçãos futuras" eram mais dificuldades, principalmente servidão, disciplina e adversidades cruéis. Fui espírita - isto é, nos padrões em que essa opção religi...

BURGUESIA ILUSTRADA QUER “SUBSTITUIR” O POVO BRASILEIRO

O protagonismo que uma parcela de brasileiros que estão bem de vida vivenciam, desde que um Lula voltou ao poder entrosado com as classes dominantes, revela uma grande pegadinha para a opinião pública, coisa que poucos conseguem perceber com a necessária lucidez e um pouco de objetividade. A narrativa oficial é que as classes populares no Brasil integram uma revolução sem precedentes na História da Humanidade e que estão perto de conquistar o mundo, com o nosso país transformado em quinta maior economia do planeta e já integrando o banquete das nações desenvolvidas. Mas a gente vê, fora dessa bolha nas redes sociais, que a situação não é bem assim. Há muitas pessoas sofrendo, entre favelados, camponeses e sem-teto, e a "boa" sociedade nem está aí. Até porque uma narrativa dos tempos do Segundo Império retoma seu vigor, num novo contexto. Naquele tempo, "povo" brasileiro eram as pessoas bem de vida, de pele branca, geralmente de origem ibérica, ou seja, portuguesa ou...

A HIPOCRISIA DA ELITE DO BOM ATRASO

Quanta falsidade. Se levarmos em conta sobre o que se diz e o que se faz crer, o Brasil é um dos maiores países socialistas do mundo, mas que faz parte do Primeiro Mundo e tem uma das populações mais pobres do planeta, mas que tem dinheiro de sobra para viajar para Bariloche e Cancún como quem vai para a casa da titia e compra um carro para cada membro da família, além de criar, no mínimo, três cachorros. É uma equação maluca essa, daí não ser difícil notar essa falsidade que existe aos montes nas redes sociais. É tanto pobre cheio da grana que a gente desconfia, e tanto “neoliberal de esquerda” que tudo o que acaba acontecendo são as tretas que acontecem envolvendo o “esquerdismo de resultados” e a extrema-direita. A elite do bom atraso, aliás, se compôs com a volta dos pseudo-esquerdistas, discípulos da Era FHC que fingiram serem “de esquerda” nos tempos do Orkut, a se somar aos esquerdistas domesticados e economicamente remediados. Juntamente com a burguesia ilustrada e a pequena bu...

DOUTORADO SOBRE "FUNK" É CHEIO DE EQUÍVOCOS

Não ia escrever mais um texto consecutivo sobre "funk", ocupado com tantas coisas - estou começando a vida em São Paulo - , mas uma matéria me obrigou a comentar mais o assunto. Uma reportagem do Splash , portal de entretenimento do UOL, narrou a iniciativa de Thiago de Souza, o Thiagson, músico formado pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) que resolveu estudar o "funk". Thiagson é autor de uma tese de doutorado sobre o gênero para a Universidade de São Paulo (USP) e já começa com um erro: o de dizer que o "funk" é o ritmo menos aceito pelos meios acadêmicos. Relaxe, rapaz: a USP, nos anos 1990, mostrou que se formou uma intelectualidade bem "bacaninha", que é a que mais defende o "funk", vide a campanha "contra o preconceito" que eu escrevi no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... . O meu livro, paciência, foi desenvolvido combinando pesquisa e senso crítico que se tornam raros nas teses de pós-graduação que, em s...

NEGACIONISTA FACTUAL E SUAS RAÍZES SOCIAIS

O NEGACIONISTA FACTUAL REPRESENTA O FILHO DA SOCIALITE DESCOLADA COM O CENSOR AUSTERO, NOS ANOS DE CHUMBO. O negacionista factual é o filho do casamento do desbunde com a censura e o protótipo ilustrativo desse “isentão” dos tempos atuais pode explicar as posturas desse cidadão ao mesmo tempo amante do hedonismo desenfreado e hostil ao pensamento crítico. O sujeito que simboliza o negacionista factual é um homem de cerca de 50 anos, nascido de uma mãe que havia sido, na época, uma ex-modelo e socialite que eventualmente se divertia, durante as viagens profissionais, nas festas descoladas do desbunde. Já o seu pai, uns dez anos mais velho que sua mãe, havia sido, na época da infância do garoto, um funcionário da Censura Federal, um homem sisudo com manias de ser cumpridor de deveres, com personalidade conservadora e moralista. O casal se divorciou com o menino tendo apenas oito anos de idade. Mas isso não impediu a coexistência da formação dúbia do negacionista factual, que assimilou as...

A IMPORTÂNCIA DE SABERMOS A LINHA DO TEMPO DO GOLPE DE 2016

Hoje o golpismo político que escandalizou o Brasil em 2016 anda muito subestimado. O legado do golpe está erroneamente atribuído exclusivamente a Jair Bolsonaro, quando sabemos que este, por mais nefasto e nocivo que seja, foi apenas um operador desse período, hoje ofuscado pelos episódios da reunião do plano de golpe em 2022 e a revolta de Oito de Janeiro em 2023. Mas há quem espalhe na Internet que Jair Bolsonaro, entre nove e trinta anos de idade no período ditatorial, criou o golpe de 1964 (!). De repente os lulistas trocaram a narrativa. Falam do golpe de 2016 como um fato nefasto, já que atingiu uma presidenta do PT. Mas falam de forma secundária e superficial. As negociações da direita moderada com Lula são a senha dessa postura bastante estranha que as esquerdas médias passaram a ter nos últimos quatro anos. A memória curta é um fenômeno muito comum no Brasil, pois ela corresponde ao esquecimento tendencioso dos erros passados, quando parte dos algozes ou pilantras do passado r...