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O ANO EM QUE POUCOS SE ACHAVAM MAIS DO QUE TODO MUNDO


Nunca uma minoria de privilegiados se achou tão dona da verdade quanto a elite do bom atraso, que vive hoje um clima de felicidade tóxica diante da qual qualquer tentativa de questionamento sofre boicote nas redes sociais. Afinal, a ordem social que domina o Brasil é uma minoria de pessoas bem de vida que, só porque têm dinheiro, diplomas e bens de consumo, acha que pode julgar em nome do resto da humanidade. Uns poucos que se acham mais do que todo mundo.

A elite do bom atraso impõe seus princípios. Nada de senso crítico. O cérebro não pode pensar, o coração é que pensa e o cérebro só assina embaixo fornecendo argumentos falaciosos. Hoje a realidade não importa mais, o que importa é o sonho, mesmo que seja o de uma nação ainda na sua primeira infância existencial, o Brasil, se autoproclame "amadurecido" com apenas 523 anos, indo para 524.

Nunca foi tão difícil repercutir com senso crítico, ser realista, cobrar transparência, cobrar coerência. Nunca ficou tão difícil convencer com argumentos lógicos, quando o que boa parte das pessoas, teleguiadas nesse clima de alegria tóxica em que vivemos, deseja é a supremacia do pensamento desejoso, da credulidade infantil, do misticismo obsessivo, das emoções baratas que substituíram as emoções profundas e humanas.

A diferença entre as emoções profundas e humanas, que entendem que nem tudo é festa e sabem que nosso país não é um parque de diversões, é evidente em relação às emoções baratas do hedonismo vazio de senso de humanidade. Uma dominação de instintos, uma sensação tóxica de liberdade em que o que importa é o ego e sua desenfreada obsessão em consumir, curtir e se divertir.

Daí que o pensamento crítico, que já é uma postura rejeitada pelos documentários e teses acadêmicas, cada vez mais trocando o raciocínio questionador pela passagem de pano, andou em baixa no nosso país. Os debates e questionamentos continuam, mas sempre isolados em bolhas socioculturais que coexistem sem que umas interfiram em outras, o que é uma faca de dois gumes.

Afinal, a mediocrização cultural está atingindo níveis totalitários. Os brasileiros já não pensam mais como eles mesmos, mas como os empresários trabalharam, através das manobras psicológicas de seu marketing engenhoso, para que as pessoas pensassem conforme o establishment, o "sistema", o "esquemão".

Eu, como jornalista, resisto em acabar com o Linhaça Atômica para dar lugar ao Mentira News. Prefiro reconhecer uma realidade dolorosa e complexa, em vez do maniqueísmo de contos de fadas em que o "mal" é o bolsonarismo e o "bem" é o lulismo.

Para piorar, criticar o lulismo sem ser bolsonarista é muito pior do que fazer críticas sendo um bolsomínion de carteira. Infelizmente o Brasil vive o Fla x Flu político e é risível que Lula, um dos polos da polarização, queira combatê-la acreditando num "país único", uma "democracia" condicionada por uma postura de estar sempre de acordo e não questionar. Em todo caso, deixemos que o imaginário Vovô Gorducho, que supostamente controla o universo e que tem em Lula seu protegido, resolva qualquer enrascada.

Vivemos os roaring twenties brasileiros, em que o cenário sociocultural e político favorece mais as pessoas que festejam de madrugada, gritando e rindo em volume estridente, do que o trabalhador que precisa dormir cedo para trabalhar no dia seguinte.

Mas o trabalhismo existe? Infelizmente, o proletariado, o lumpesinato, os intelectuais genuínos, os artistas genuínos, os solitários caseiros, os solteiros convictos, todos eles que não se identificam com o festejo identitário do Brasil de Lula 3.0 estão fora desse "único povo", dessa "democracia" que só diz "sim", neste AI-SIMco que pune os contestadores pelo cancelamento, pelo desprezo social.

Tudo agora é só festa, consumismo. Carlinhos Lyra, João Donato e Dóris Monteiro estão mortos, a onda agora é o trap, as funqueiras, a sofrência, o piseiro. Violão era máquina de matar fascistas? Mas os popularescos não a usam para combater Bolsonaro, a precarização musical só exige um microfone na mão e uma ideia na cabeça, desde que essa ideia seja a mais simplória possível. Afinal, até Renato Russo virou vidraça, e a Legião Urbana rebaixada a "mais uma atração" do Ploc 80.

A alegria tóxica, a felicidade como um fim em si mesmo, o consumismo desenfreado e sem critérios, a supremacia dos impulsos e dos instintos, tudo isso integra o código de conduta da elite do bom atraso, a classe média pequeno-burguesa disfarçada de "gente simples", contaminando o inconsciente de todos os brasileiros com valores privativos e temporários que se impõem como forçadamente permanentes, dos currais humanos chamados parklets e da gíria "balada" até a idolatria a "médiuns" pseudo-altruístas e a funqueiros falsamente libertários.

A elite do bom atraso e seus poucos plenamente privilegiados exigem que um país submisso e obediente - qualidades agora "socialmente recomendáveis" em nome da "paz social" que movimenta nossa economia - se mantenha assim para que alcancemos o Primeiro Mundo sem esforço, apenas com os bicos calados e a flanela no lugar do teclado do computador ou da tinta da caneta.

Essa velha ordem social travestida de nova, cuja linhagem cometeu horrores como exterminar tribos indígenas e escravizar negros, a impor o voto de cabresto na República Velha (prática curiosamente reativada tanto por Bolsonaro quanto por Lula, este com sua "democracia de um homem só") e, num passado não muito remoto, bradar pela queda de João Goulart e pelo aumento da repressão pelo AI-5, agora se faz de "boazinha" fingindo defender o socialismo e até o fortalecimento do Estado.

Por isso vemos que um sistema de valores que se desenvolveu sob as batutas dos generais Médici e Geisel buscou sobreviver sob Lula, através de uma sutil ressignificação de teor bastante tendencioso, como se o antigo IPES-IBAD fosse, agora, a estrela-guia de um "socialismo de butique e de boteco".

A prosperidade plena só existe para uma elite de 30% de brasileiros, entre o pobre domesticado e o super-rico festivo (mas excluído das bancadas decisórias das elites financeiras e empresariais), mas temos que fingir que "todos nós" temos direito a essa prosperidade, mas já se sabe que nada será permitido sem que certas condições fossem exercidas, como aceitar a mediocrização cultural que hoje assola o país.

Afinal, o grande empresariado do entretenimento, composto de gente "muito legal" para bancar a diversão da "boa" sociedade, tem que se enriquecer porque "merece tal recompensa", ninguém pode colocá-los na lista punitiva dos "super-ricos", se eles financiam a cerveja, o futebol, a música rasteira de ídolos pop fazendo pleibeque nos palcos.

Por isso o cenário é triste de uma felicidade tóxica que imagina ser sustentável e eterna. Os roaring twenties brasileiros têm como preocupante diferença o desprezo a qualquer risco de um novo "1929". A ilusão de que Lula resolve tudo sempre, sendo o único que, errando, "está sempre certo", faz com que as pessoas se mergulhem nessa felicidade tóxica que, de tão tóxica, se acha imperecível e invulnerável.

O problema é que, por muito menos que o cenário brasileiro, a Argentina abriu caminho para um Milei.

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