O saudoso Arnaldo Jabor, cineasta, jornalista e um dos fundadores do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC - UNE), era um dos críticos da deterioração da cultura popular nos últimos tempos. Ele acompanhava a lucidez de tanta gente, como Ruy Castro e o também saudoso Mauro Dias que falava do "massacre cultural" da música popularesca.
Grandes tempos e últimos em que se destacava um pensamento crítico que, infelizmente, foi deixado para trás por uma geração de intelectuais tucanos que, usando a desculpa do "combate ao preconceito" para defender a deterioração da cultura popular.
O pretenso motivo era promover um "reconhecimento de grande valor" dos sucessos popularescos, com todo aquele papo furado de representar o "espírito de uma época" e "expressar desejos, hábitos e crenças de um povo". Para defender a música popularesca, no fundo visando interesses empresariais e políticos em jogo, vale até apelar para a falsa etnografia, para a "sociologia de botequim".
Me lembro de Jabor fazendo duras críticas à axé-music, com aquela "alegria" que agride. Ele falava da positividade tóxica, décadas antes do termo pegar moda. E vejo o quanto a "alegria" da axé-music não passa de uma mercadoria de consumo, uma sensação e não um sentimento, pois nossa "sociedade do amor", sem medo e sem amor, é uma humanidade desumana, corpos animados para se tornarem meras máquinas de prazer.
No meu caminho para o estágio de corretor de imóveis, na manhã do sábado passado, eu passei diante de um empreendimento da incorporadora concorrente no bairro do Limão, aqui em Sampa, e estava tocando uma canção do É O Tchan. Algo constrangedor, uma alegria tóxica que ofende, que agride, que engana.
Em 1995, quando morava no Resgate, em Salvador, a vizinhança tocava inicialmente o Gerasamba, grupo de pagode baiano que não tinha dançarina nem apelo sexual. Era comercial mas dava para aguentar. Meses depois o grupo foi comprado pelo empresário Cal Adan, ganhou uma dupla de dançarinas e mudou o nome para É O Tchan, relançando o primeiro LP que chegou a ser prensado com o antigo nome do grupo.
Ninguém pode me acusar de preconceituoso porque desde criança sou obrigado a ouvir música popularesca tocada por terceiros. Ou seja, conheço mais música popularesca do que a intelligentzia que diz, com seu cinismo hipócrita, que "ninguém é obrigado a gostar (de música popularesca), mas é obrigado a aceitar".
A vida não é só sorrisos, embora a gente busque, sim, ter serenidade e vida próspera. Queremos viver tranquilos, é verdade, mas temos uma sociedade abusiva, egoísta, que mesmo no contexto da democracia formal de hoje promove novas desigualdades sociais, com um clubinho de subcelebridades, ídolos musicais popularescos, esportistas, celebridades, empresários do entretenimento, empresários de bebidas alcoólicas e cigarros, entre outros bacaninhas que trouxeram sol, cor e festa para o banquete dos super-ricos.
Fora dessa bolha, que agora transformou a iniciativa privada em autarquia, para receber do presidente Lula generosas gorjetas estatais, o Brasil vive um sério drama social, com os pobres de verdade invisíveis até no imaginário lulista, tão gaboso de ser socialmente consciente.
E aí vemos o quanto É O Tchan não fala de minha vida, de minha realidade, da realidade do Brasil. É triste saber que teve gente dizendo, nas redes sociais, que o É O Tchan é melhor do que os Beatles. Esse sujeito deve ser um burguesinho enrustido, capaz de gostar das canções horríveis do grupo baiano e seu sexismo pornográfico marcado por uma positividade tóxica que força uma felicidade e uma alegria incabíveis em qualquer situação, sobretudo em tempos distópicos como os de hoje.
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