É vergonhoso ver como a cultura rock e seu mercado radiofônico se reduziram hoje em dia, num verdadeiro lixo que só serve para alimentar fortunas do empresariado do entretenimento, de promotoras de eventos, de anunciantes, da mídia associada, às custas de produtos caros que vendem para jovens desavisados em eventos musicais.
São os novos super-ricos a arrancar cada vez mais o dinheiro, o couro e até os rins de quem consome música em geral, e o rock, hoje reduzido a um teatro de marionetes e um picadeiro da Faria Lima, se tornou uma grande piada, mergulhada na mesmice do hit-parade. Ninguém mais garimpa grandes canções, conformada com os mesmos sucessos de sempre, esperando que Stranger Things e Velozes e Furiosos façam alguma canção obscura se popularizar.
Nos anos 1980, houve uma rádio muito brilhante, que até hoje não deixou sucessora à altura, seja pelos critérios de programação, pelo leque amplo de músicas tocadas e pela linguagem própria de seus locutores, seja pelo alcance do sinal tanto em Niterói quanto no Rio de Janeiro.
Essa rádio foi a Fluminense FM, a Maldita, que eu pude ouvir e admirar, embora eu parecesse então mais "careta" para ouvir uma rádio dessas, diferente da gente "rasical e transada" que parecia mais rebelde mas hoje se ajoelha resignada diante de qualquer "Jovem Pan com guitarras" que se autoproclame "rádio rock".
Escrevo sobre a Fluminense FM porque já está pronto o filme Aumenta Que Isso Aí é Rock'n'Roll, de Tomás Portella, que, embora tenha se inspirado no livro A Onda Maldita, de Luiz Antônio Mello, tem também trechos fictícios do roteirista L. G. Bayão. Com Johnny Massaro como Luiz Antônio Mello, o filme tem alguns personagens com nomes alterados.
Eu tinha 11 anos quando ouvia a Fluminense FM (94,9 mhz) dos primeiros meses, por intermédio de um vizinho guitarrista que mantinha o rádio ligado, e os locutores não precisavam ter o mesmo estilo poperó de locução para serem compreendidos por mim, naquele ano de 1982. E quando comecei a ouvir a Flu por conta própria eu tinha 12 anos, em 1983.
Naquela fase entre o fim da infância e do começo da adolescência, eu compreendia que a Fluminense era bem mais do que a rádio que tocava Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Barão Vermelho e Kid Abelha. Até hoje, nenhuma rádio de rock teve coragem, como a Fluminense FM teve, de jogar na programação normal artistas "difíceis", muitos deles até hoje sem chance de terem discos lançados no Brasil.
Note a lista: XTC, Byrds, Gentle Giant, Lotus Eaters, Weather Prophets, Velvet Underground, Thin Lizzy, English Beat, Specials, Buzzcocks, Squeeze, Durutti Column, Cocteau Twins, Stewart Copeland (o subestimado baterista do Police), entre milhares de outros.
Dando banho de água gelada nas rádios canastronas "de rock", a Fluminense FM tocava mais as bandas da Baratos Afins do que a 89 FM e tocava mais Camisa de Vênus do que a 96 FM de Salvador.
Hoje o YouTube dá um banho nas "rádios rock" atuais que só tocam os "grandes sucessos" e as "canções de trabalho", mas antes da Internet a Fluminense FM cumpria uma função parecida, com uma ousadia até hoje nunca superada nem sequer igualada ou mesmo aproximada.
Infelizmente, o radialismo rock entrou em queda livre quando a rádio 89 FM, de São Paulo, ignorou o perfil original e personalizado de rádio de rock para apostar em um modelo que, na prática, é o de uma "rádio pop com vitrolão roqueiro". Isso desnorteou as rádios de rock originais em todo o país, privou capitais como Salvador, Fortaleza e Aracaju de terem rádios de rock autênticas e as emissoras pioneiras foram desaparecendo uma a uma, depois de tentar imitar o formato da 89 FM A Rádio Rockefeller.
É irônico que eu, depois de tanto tempo andando em frente ao prédio do jornal O Fluminense, na frente da rodoviária de Niterói, hoje ando pela Praça Osvaldo Cruz, no Paraíso, mais interessado em visitar o Shopping Pátio Paulista do que em conhecer a "Jovem Pan com guitarras" que irradia nos 89,1 mhz daqui de Sampa.
O resultado da concorrência voraz foi que o radialismo rock morreu em 1994, com a Fluminense FM e a sua discípula paulista, a 97 Rock, de Santo André, derrubadas num espaço de três meses. A 89 não tem 1% do brilho e da competência da Fluminense FM, mas prevaleceu porque tem muito mais dinheiro.
Para piorar, nos últimos anos, outra FM canastrona, a Rádio Cidade do Rio de Janeiro, vomitou no prato em que comeu e não só renegou seu passado de simpática rádio pop, forçando a barra como dublê de rádio de rock, como tentou, à maneira de Salieri tentando roubar o prestígio de Mozart, roubar o prestígio da Flu FM, a ponto de espalhar fake news e inventar que a rádio dos 102,9 mhz sempre foi ligada ao rock, tentando confundir os mais jovens com uma história cheia de meias-verdades.
Era constrangedor ouvir clássicos do rock - quando a Cidade veio com o projeto flash rock, espécie de imitação subnutrida da Maldita (digamos que a Cidade, queridinha do mercado, pudesse ser apelidada de Bendita) - com a vinheta da moça com voz sexy falando "Cidade". Mentira pura, conversa para boi dormir, até porque quando Ramones, AC/DC e Iron Maiden estavam em ascensão, a Cidade estava na dela, tocando disco music e pop convencional.
A Fluminense FM, hoje, se limita a ser uma tímida webradio chamada Maldita 3.0, situada no portal do jornal O Fluminense. Desde 1990 (quando a Flu FM virou pop e depois voltou ao rock num despenho fraco no conjunto da obra), o Grande Rio nunca mais contou com uma rádio de rock de verdade e que pudesse ser sintonizada até nas praias de Niterói, com bom sinal, repertório abrangente e locutores de voz sóbria e entendedores de rock. Várias tentativas se limitaram a rádios digitais ou comunitárias com sinal problemático em Niterói ou simplesmente não pegavam na antiga capital fluminense. Havia até rádios irradiando em outras cidades, sem um sinal sequer fraco na terra de Arariboia.
Para piorar, radialismo rock hoje se rebaixou a um formato que se limita a uma programação só de sucessos óbvios de rock e locutores animadinhos, com jeitões de apresentadores de gincanas infantis ou de ginásticas aeróbicas, mais preocupados em vender ingressos, carros e viagens e sortear prêmios. São as tais "Jovem Pan com guitarras", as rádios pop que "só tocam rock" cujos únicos horários que prestam são os poucos programas realmente roqueiros transmitidos no fim de noite. Lamentável. Daí que, hoje, o público de rock não ouve mais rádio e se migrou para o YouTube e para o MP3.
Aumenta Que Isso Aí é Rock'n'Roll pode não ensinar as novas gerações como realmente foi a Fluminense FM, mas, além de garantir um bom entretenimento com bom enredo e boas atuações, o filme pode servir de semente, despertando a curiosidade do pessoal que quer conhecer o radialismo rock autêntico, há décadas fora do ar no dial de FM, por outras fontes.
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