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DUAS FACES DE UMA MESMA VELHA ORDEM SOCIAL

A CLASSE MÉDIA "PREDESTINADA" DO BRASIL DE HOJE É DESCENDENTE DA GERAÇÃO QUE CONSUMIA BENS MATERIAIS E NÃO-MATERIAIS NA ÉPOCA DO "MILAGRE BRASILEIRO".

Os fatos criam um contraste entre o Brasil de contos de fadas de Lula e os resíduos da tragicomédia (às vezes só comédia, em outras só tragédia) do ódio bosonarista. 

De um lado, Lula planejando viagem para o exterior, que inclui contato com o Papa Francisco I e autoridades italianas, além de uma participação num concerto da banda britânica Coldplay. E isso quando Lula anuncia crescimento do Produto Interno Bruto e o aumento do mínimo existencial para famílias carentes endividadas de R$ 303 para R$ 600.

De outro, Jair Bolsonaro às vésperas de julgamento, Deltan Dallagnol e Monark querendo viver fora do Brasil com medo da Justiça, um atentado feito por um jovem contra um casal de adolescentes numa escola em Cambé, no interior do Paraná, matando uma garota e o namorado dela, e um feminicídio ocorrido em Maceió, Alagoas, uma das capitais mais perigosas para as mulheres viverem, juntamente com Goiânia, Curitiba, João Pessoa e Vitória.

Nesse cenário contrastante, vemos a prevalência de uma velha ordem social que, nos padrões atuais, está no poder no Brasil desde, pelo menos, 1974. Trata-se da elite do atraso, descendente das antigas oligarquias escravocratas do Brasil colonial, e que desde a Lei Áurea via escapar de suas mãos o protagonismo hegemônico, que em primeiro momento permitiu um último fôlego supremacista durante os cerca de 40 anos de República Velha.

Atuando como coadjuvante forçada, embora sempre mantendo seus privilégios e seu poder nas condições que lhes permitiam - como no interior do país, com cidades dominadas por latifundiários que se achavam "donos" desses municípios - , as elites do atraso só puderam recuperar o protagonismo pleno com o golpe político de 1964, depois de anos de varguismo que nem os hiatos "liberais" dos governos Dutra (1946-1950) e Café Filho (1954-1955) puderam romper, e seus herdeiros Juscelino Kubitschek (1956-1961) e João Goulart (1961-1964), sob o hiato ineficaz de Jânio Quadros.

O atual "desenho" cultural da sociedade que hoje domina opinião pública e senso comum no Brasil era latente quando o instinto de espetacularização preferiu eleger Jânio Quadros e sua performance que fazia parecer saído de algum quadro de programas como o antigo humorístico Noites Cariocas (1958-1965), da TV Rio / TV Record, do que o marechal Henrique Lott com plena capacidade técnica de promover o progresso social, com ênfase na educação pública.

Mas a "inauguração" da atual ordem social, velha e mofada na sua essência, apesar de tentar novas roupagens, veio a partir da Marcha da Família Unida com Deus pela Liberdade, que pediu a derrubada de Goulart em 1964.

A partir dessa sociedade, se dividiu em duas correntes, uma, mais tradicionalista, que defendia o fechamento do regime e aplaudiu o AI-5. Outra corrente era diferente, contrária ao arbítrio da ditadura militar. Esta era uma sociedade, predominantemente juvenil naqueles tempos de 1964-1973, voltada ao hedonismo identitário de uma assimilação banalizada da Contracultura, depois de absorver o relativo cosmopolitismo da Jovem Guarda e as provocatividades do Tropicalismo.

De um lado, a família tradicionalista, patriarcal, das mulheres rezadeiras, dos funcionários da Censura Federal, dos devotos da "revolução", como a ditadura militar era conhecida oficialmente, da burguesia ansiosa em ampliar seus privilégios. Seus jovens representantes se engajavam em entidades como a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e os "institutos" IPES-IBAD, ancestral dos farialimeiros (farialimers) de hoje em dia.

De outro, a juventude moderninha relativamente progressista, mas pouco identificada, senão por afinidades pontuais, com o legado humanitário e progressista do varguismo e seus derivados (Kubitschek e Jango) e da cultura intelectualizada herdada do Modernismo de 1922. Leonel Brizola, por exemplo, é mais tolerado do que apoiado por essa "esquerda festiva", que também só aprecia o proletariado e o campesinato com um apoio formal e protocolar.

Seu senso de brasilidade é relativo, pois se identificam mais com o pop estrangeiro e não defendem uma ruptura total com o culturalismo vira-lata que dispensar a cosmética da raiva e da intolerância. Preferem o consumismo desenfreado do que apreciar o Humanismo clássico, que lhes soa chato e "careta".

Daí que, enquanto essa sociedade moderninha do desbunde é mais receptiva ao culturalismo conservador "sem raiva"- como a música brega-popularesca e religiões como o Espiritismo brasileiro - e não viam problema em aproveitar o "lado positivo" do "milagre brasileiro", como o consumismo e o fanatismo pelo futebol (a partir do ufanismo da Copa do Mundo de 1970), são hostis ao antigo humanismo da Bossa Nova e da geração intelectual de 1945, resistente no período através de veículos como o periódico O Pasquim.

A direita hidrófoba e a esquerda festiva hoje parecem nunca ter a ver uma com a outra, mas elas possuem uma mesma raiz, são dois lados de uma mesma velha ordem social, uma repaginação da velha Casa Grande realizada em 1964. Suas gerações atuais, respectivamente, se dividem entre o bolsonarismo e o lulismo.

Essa observação pode horrorizar as duas forças, mas a partir de uma simbologia trazida pelo livro O Medico e o Monstro (Dr. Jeckyll and Mr. Hyde), de Robert Louis Stevenson, se verá que isso faz sentido, longe de, todavia, explorar a visão estereotipada do "bolsolulismo", resposta identitarista ao "comitê Jan-Jan" que fez juntar Jânio Quadros e João Goulart numa pequena base de apoio conjunto, em 1960.

Isso porque temos o aparente contraste entre a "direita alternativa" do bolsonarismo e a "esquerda festiva" do lulismo. Apesar dessa oposição, as duas correntes se "divertem juntas" em muitos momentos, cultuando de "médiuns espíritas" a craques de futebol, de subcelebridade a mulheres-frutas, sob uma mesma trilha sonora à base da música brega-popularesca. Até Amado Batista, bolsonarista, e Odair José, lulista, são musicalmente idênticos. E há funqueiros assumidamente de direita, como MC Nego do Borel.

Portanto, se trata de uma mesma ordem social, por mais que cada uma das duas correntes se considere melhor que a outra. Essencialmente, não diferem muito, transformando o cotidiano brasileiro no palco da famosa obra literária de Stevenson. Neste caso, não há diferença fundamental entre o reacionarismo hardcore dos bolsonaristas e o progressismo domesticado dos lulistas. O pior é que ambos querem ver o Brasil precarizado e atrasado dominando o mundo. Isso é muito perigoso.

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