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'EU AINDA ESTOU AQUI’ E A VELHA ORDEM SOCIAL BRASILEIRA


A CONSCIÊNCIA SOCIAL DE WALTER SALLES É RARA NAS CLASSES ABASTADAS BRASILEIRAS.

A conquista do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, anteontem, para o filme Eu Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, é sem dúvida alguma uma grande façanha e um triunfo para o cinema brasileiro e para a nossa cultura em geral. Fernanda Torres não ganhou o Oscar de Melhor Atriz, mas obteve visibilidade que lhe abrirá muitas portas em sua carreira. 

Mas o contexto em que vivemos pede muita cautela e não podemos celebrar esse filme como a vitória de um “novo Brasil” nem o ingresso do nosso país entre as nações desenvolvidas do Não se trata, ainda, de entrada de uma era de cores e luzes exuberantes, mas de um cenário complexo onde o lulismo mais parece complacente do que combativo em relação aos legados simbólicos da ditadura militar.

Fazendo um trocadilho com o título do filme, a velha ordem social que se empoderou no pós-1964 ainda está aqui.Quem se lambuzou da doce vida do milagre brasileiro ainda está aqui vivendo do bom e do melhor. A diferença é que os netos das vovós que, munidas dos rosários do católico conservador Patrick Peyton, pediram a queda de Jango, e dos vovôs que arrotavam falso intelectualismo através do engajamento do IPES-IBAD, hoje são politicamente corretos.

Como lobos em peles de cordeiros, os burgueses atuais, hoje com a permanente fantasia de “gente simples” que transcende o intervalo carnavalesco, se passam por “democráticos” e até de “esquerda”, escondendo seus privilégios exorbitantes através de um modo de vida cuja linguagem é um português errado mesclado com “dialetos” em inglês e gírias irritantes como a farialimer “balada”.

Temendo que o feitiço do golpe de 1964 se voltasse contra os feiticeiros, a burguesia ilustrada de hoje tenta parecer generosa enquanto esconde seu egoísmo que faz com que essa elite cobre demais de quem não tem enquanto ganha demais sem saber o como usar o dinheiro que acumulam sem necessidade.

A burguesia de chinelos, invisível a olho nu, com seus “animais consumistas” que, na sua ganância, transformam os bares e boates em verdadeiras Cracolândias, é que tenta posar de humanista, indo ver Eu Ainda Estou Aqui com a comodidade alienada de quem vai ver um filme da franquia da Xuxa ou dos Trapalhões.

Não é qualquer Walter Salles que surge nas boates descoladas do Itaim Bibi. O filho do lendário banqueiro Walther Moreira Salles, uma classe que realizou o golpe de 1964 - ela foi iniciativa do dono do Banco Nacional de Minas Gerais, o governador mineiro Magalhães Pinto - é apenas uma exceção entre milhares de playboys enrustidos que, como papagaios, emitem um linguajar próximo ao dos borracheiros dos subúrbios.

E aí temos uma ironia. O Banco Nacional de Magalhães Pinto, que nos anos 1980 patrocinou Ayrton Senna, foi absorvido pelo Unibanco que, em seguida, foi absorvido pelo Itaú da família Setúbal e que tem nos Moreira Salles seus herdeiros, incluindo o próprio Walter Salles.

É salutar e digno de aplausos que Walter Salles tenha feito um filme justamente sobre um político do hostilizado PTB de Jango e Brizola que foi morto por militares que agiram por um caminho aberto por Magalhães Pinto. Foi o banqueiro que iniciou o golpe, quando a direita da época ainda debatia o que fazer para dar fim ao “governo da aventura” de João Goulart.

Mas hoje até parece que o golpismo é apenas uma causa de delinquentes políticos ligados ao bolsonarismo. Esquecemos que a Era Geisel deu início a uma pretensa repaginação da burguesia que, domesticando o povo pobre e a juventude, aos poucos viu no antigo golpe da força fisica ou psicológica uma medida desnecessária.

Por isso, vemos os descendentes da Casa Grande, dos velhos bandeirantes exterminadores de índios e dos velhos fazendeiros fisiológicos sa Velha República, hoje apostando na “democracia” elitista de um Lula cooptado pelas elites, pregando a velha retórica da “solidariedade”, da “união” entre a raposa e a galinha, supostamente para se adequar aos “novos tempos”.

Essas elites que defendem a precarização do trabalho e da cultura popular, que querem transformar o Brasil num parque de diversões para a burguesia ilustrada, sustentada pelos incentivos fiscais de Lula, se sentir turista do seu próprio país, da sua própria cidade. 

Querendo embarcar no prestígio de Eu Ainda Estou Aqui, a burguesia de chinelos joga suas sujeiras e sobretudo, as de seus antepassados para debaixo do tapete, na pretensão de se apropriar do prestigio de Walter Salles.

Mas a burguesia bronzeada só consegue enganar quando não se fala em grana, pois aí o pessoal diz que “não quer dinheiro e só quer amar”. Só que, quando chega o assunto da grana, a velha ganância volta a bater nos corações de chumbo dessa “sociedade do amor” sem medo e sem amor. E aí voltam os velhos desejos dessa “boa” sociedade que tem demais sem necessidade e ainda quer cobrar e deixar na miséria aqueles que não têm sequer o necessário.

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