Qual a relação entre o livro Eu Não Sou Cachorro Não, de Paulo César de Araújo, e as passeatas contra Dilma Rousseff que pediam o impeachment da presidenta? Nenhuma? Nada a ver uma coisa com outra? Engano, as duas coisas têm mais a ver uma com a outra do que se pode imaginar.
Em primeiro lugar, a campanha de gourmetização da música brega-popularesca, ou seja, de uma defesa dos sucessos popularescos como uma suposta "cultura popular", sempre foi uma ferramenta para cenários político e socioculturais conservadores.
No auge do poder de Antônio Carlos Magalhães, os professores Milton Moura e Roberto Albergaria, este já falecido, ambos da Universidade Federal da Bahia, atuavam como propagandistas do establishment culturalista da axé-music que idiotizava o público pobre por meio do mercado carnavalesco associado ao coronelismo radiofônico.
No plano nacional, Paulo César de Araújo se lançou e meio à crise da energia elétrica do segundo governo Fernando Henrique Cardoso, como uma "cortina de fumaça" para evitar as convulsões sociais que já fizeram uma tentativa de pedir a saida do sociólogo-presidente, mas o Movimento Fora FHC fracassou pouco antes.
Embora Milton Moura, num artigo acadêmico chamado "Esses Pagodes Impertinentes..." - o título inspirou de forma irônica o meu livro sobre a intelectualidade pró-brega, Esses Intelectuais Pertinentes... (Amazon e Clube de Autores) - , já defendesse o "pagodão" pós-Tchan em 1996, mais tarde corroborado por Mônica Neves Leme em Que Tchan é Esse?, que lançava a constrangedora tese de que o "pagodão" era uma cena indie (?!?!) de Salvador, foi Paulo César de Araújo que expandiu essa campanha do pretenso "combate ao preconceito".
E o que era essa campanha? Para quem chegou de viagem, o "combate ao preconceito" era uma forma de desqualificar as críticas aos chamados "sucessos do povão", com base na tese, discutível mas por muito tempo aceita por setores da chamada opinião pública, de que se trata da "verdadeira cultura popular", "livre expressão das periferias".
Essa campanha seguiu um caminho que deve ser levado em conta. Afinal, não se trata de uma campanh de caráter progressista nem de solidariedade autêntica das classes populares. Até porque a música e os valores socioculturais associados já tratam o povo pobre de maneira preconceituosa, não havendo como aceitar como "ruptura de preconceito" um culturalismo que trata o povo pobre como se fosse uma multidão de núcleos cômicos de novelas ou de programas e filmes humorísticos.
Esse culturalismo começava mal. Afinal, o "combate ao preconceito" era uma desculpa para aceitar a precarização cultural das classes populares, legitimando fenômenos que, acumulativamente, se projetaram do período ditatorial nos anos 1970 ("milagre brasileiro" e Era Geisel), da Era Sarney, da Era Collor e da Era FHC. A ideia é prolongar e gourmetizar os fenômenos popularescos como forma de barrar o progresso sociocultural diante da agenda progressista dos governos de Lula e Dilma Rousseff.
O tal "combate ao preconceito" teve, ao longo dos anos, seus diversos ideólogos: os mais antigos, Milton Moura e Roberto Albergaria, vieram da Bahia. De Minas Gerais, Eugênio Raggi, localmente famoso como professor de História e pela linguagem grosseiramente jocosa na Internet. Mas no eixo Rio-São Paulo, vários nomes se destacavam com a choradeira pela aceitação dos fenômenos popularescos como "a fina flor do novo folclore brasileiro", no desespero de tornar "etnográfico" o jabaculê cultural popularesco.
Tinha a "santíssima trindade" que centralizava o discurso: Paulo César de Araújo, Pedro Alexandre Sanches e Hermano Vianna. O "deus" Paulo César, baiano radicado no Rio de Janeiro, com seu livro, acima citado, considerado "a Bíblia do combate ao preconceito". Apear de Araújo, e não Sanches, ser "crucificado" por conta do caso Roberto Carlos, o autor de Eu Não Sou Cachorro Não está mais para um "deus" mediante a ação orgânica em prol da bregalização.
Por sua vez, o "cristo" Pedro Alexandre Sanches era uma cria do anti-esquerdista Projeto Folha que fez sua "peregrinação" pelos diversos veículos da imprensa esquerdista para fazer proselitismo em favor do que Sanches definiu como "popular demais". E tinha o "espírito santo" Hermano Vianna, irmão do paralama Herbert, e seu modo "racional" de abordar a bregalização cultural, atuando como pretensioso cosplei brega de Mário de Andrade ao forjar viagens "etnográficas" para o Central da Periferia.
Além deles, uma multidão de jornalistas, acadêmicos e cineastas: Mônica Neves Leme, Ivana Bentes, Rodrigo Faour, entre outros. Um desavisado Sílvio Essinger mordeu a isca e apostou na tese ilógica de que o "funk" era tão "subversivo" quanto o punk. No meio artístico, Patrícia Pillar e Zeca Baleiro estavam entre os entusiastas da bregalização. Na Bahia, Malu Fontes foi defender a imbecilização do arrocha. O acadêmico Thiagsson é um dos mais novos propagandistas da bregalização, que teve também, nos anos 2000 e 2010, o funqueiro MC Leonardo defendendo sua causa funqueira.
Esse "combate ao preconceito" foi feito para sabotar os debates culturais, evitando duas coisas:
1) Evitar o retorno de debates profundos como os que eram feitos, entre 1961 e 1964, pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE);
2) Evitar a ascensão de músicos universitários solidários à música popular de raiz e que ajudaram a recuperar as carreiras de nomes como Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti e João do Vale, que se somavam aos hoje medalhões da MPB que, integrantes de classe média, chamavam atenção para a MPB de qualidade através dos festivais da TV entre 1966 e 1968.
Esse empenho se confirmou quando, na revista Caros Amigos, Pedro Alexandre Sanches demonizava Chico Buarque (chamado pelo jornalista de "coronel da Fazenda Modelo") e, em seus artigos "provocativos", o "filho da Folha" defendia a bregalização usando argumentações identitárias. Sanches adotava uma visão udenista da "reforma agrária", quando defendia a tal "reforma agrária na MPB" com claro respaldo, financeiro e ideológico, ao mercadão cultural popularesco apoiado pelo grande empresariado, por fazendeiros e chefões da grande mídia.
Sanches cometia a "façanha" de criar um contraste quanto à abordagem das classes populares na mídia esquerdista: enquanto nas editorias de Política, Cidadania e Brasil o povo pobre era visto como um povo batalhador, sofrido e insubmisso, na editoria de Cultura, através dos textos de Sanches e similares, o povo pobre aparecia sob a imagem caricatural de uma multidão festiva, que trata a vida nas favelas como um "carnaval permanente", onde toca o "sucesso do povão" difundido pela mídia empresarial.
Com um discurso que variava entre o coitadismo (Paulo César de Araújo) e a arrogância (Eugênio Raggi), o "combate ao preconceito" criava um imaginário que via na pobreza não uma tragédia social, mas uma "identidade cultural" e, pasmem, um "ideal de vida". Tudo era "positivo": a prostituição, a objetificação do corpo feminino, o machismo, o trabalho precário, o alcoolismo, o comércio clandestino, o analfabetismo. A ignorância era vista como uma "pureza espiritual" e até a pedofilia era uma "iniciação sexual" das meninas pobres das favelas.
Casas precárias das favelas viravam "arquitetura pós-moderna". Favelas sem sustentabilidade, sem acessibilidade - imagine portadores de deficiência física andarem longos acessos que incluem escadas malfeitas e perigosas para ir da casa ao ponto de ônibus para as áreas urbanas - , com a violência policial e com grupos criminosos que até tem origem pobre, mas acabam se tornando perversos devido ao aumento de poder dentro dessas comunidades.
Tudo isso ao som de canções precariamente feitas, com péssimos cantores e péssimos arranjos, que a intelectualidade pró-brega, lembrando pais autoritários empurrando remédios amargos para seus filhos pequenos, dizia com irritada arrogância: "não é preciso gostar, mas tem que se respeitar". Respeitar uma "cultura" que trata o povo pobre como se fosse um bando de idiotas.
A ligação dessa campanha do "combate ao preconceito" com o golpe político de 2016 - e nem vamos detalhar, aqui, os papéis de "quinta-coluna" de Bruno Ramos, da Liga do Funk, e de Rômulo Costa, da Furacão 2000, em 2016, à maneira de Cabo Anselmo durante a crise do governo João Goulart em 1964 - pode até ser indireta, mas certeira.
O que liga a campanha do "combate ao preconceito" da bregalização cultural ao "combate à corrupção" do discurso lavajatista - diante da aparente coincidência de Pedro Alexandre Sanches e Sérgio Moro serem conterrâneos, da mesma Maringá conservadora dos últimos 55 anos - é um caminho de desmobilização popular e fragilização das iniciantes conquistas sociais dos governos do PT.
Vejamos:
1) O discurso da bregalização, com forte apelo identitarista, tirou o povo pobre da mobilização política, pois a narrativa intelectual pró-brega alegava que o entretenimento popularesco já era um tipo de "ativismo social", por conta da suposta "provocatividade" comportamental;
2) Com o povo "ocupado" no entretenimento popularesco, os movimentos sociais progressistas foram esvaziados, atuando como ações de cúpula, com dirigentes praticamente falando sozinhos;
3) O vácuo da conscientização política do povo pobre, devido à forçada aceitação da bregalização (e imbecilização) cultural, que mostrava a "doce vida" de ser pobre, abriu caminho para o surgimento e o crescimento de uma oposição reacionária, da qual o comentarista Rodrigo Constantino é um dos porta-vozes mais constantes;
4) As forças reacionárias também surgiram forjando uma falsa solidariedade às classes populares, tornadas "idiotizadas" pela "cultura do PT", através de uma interpretação tendenciosa da colonização cultural que os intelectuais da bregalização fizeram na mídia de esquerda. E que custaram, mais tarde, a falência da Caros Amigos (negativamente visada pelo apoio ao "funk" e à bregalização em geral) e o fim da versão impressa da Revista Fórum, cuja edição com Gaby Amarantos na capa encalhou nas bancas.
A partir daí, vieram as crises do ECAD e do Procure Saber, as atitudes "engraçadinhas" de professores do ensino médio definindo ídolos popularescos como "grandes pensadores" e os "rolezinhos" de funqueiros tão estranhos, como "revoluções coloridas", quanto os protestos de estudantes contra os aumentos das passagens de ônibus.
Com toda essa confusão - marcada por incidentes que vão desde a denúncia de Ancelmo Góis de que Pedro Alexandre Sanches fingiu apoiar o PT para obter dinheiro da Lei Rouanet e o grupo de sambrega Sambô cantar uma versão sorridente, em clima de "churrasco na laje", da trágica canção "Sunday Bloody Sunday" do U2 - , emergiu a Operação Lava Jato e todo o conhecido discurso de "combate à corrupção" que, aos poucos, permitiu que Michel Temer impusesse retrocessos e abrisse caminho para Jair Bolsonaro e seu governo nocivo.
Isto quer dizer que usou-se o discurso do "combate ao preconceito" para desqualificar os debates sérios sobre os rumos da cultura popular. Sanches colonizou a mídia esquerdista para esta aceitar o mesmo culturalismo brega difundido pela mídia empresarial. Mordendo a isca, as esquerdas que aceitaram essa narrativa caíram no ridículo e liberaram a área para o culturalismo de direita. E, a partir daí, todo o discurso "contra a corrupção" se deu, chegando a destruir o nosso país.
Daí que o "combate ao preconceito" se deu no "combate à corrupção" que, apesar dos estragos, até agora não fez as esquerdas adotarem uma postura autocrítica por terem aceitado e apoiado o canto de sereia da intelectualidade pró-brega.
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