O falecimento do cantor e compositor carioca Jards Macalé aos 82 anos, duas semanas após a de Lô Borges, mostra o quanto a MPB anda perdendo seus mestres um a um, sem que haja uma renovação artística que reúna talento e visibilidade.
Macalé, que por sorte se apresentou em Belém, no Pará, no Festival Se Rasgum, em 2024. Jards foi escalado porque o convidado original, Tom Zé, não teve condições de tocar no evento. A apresentação de Macalé acabou sendo uma despedida, um dos últimos shows do artista em sua vida.
Belém é capital do Estado da Região Norte de domínio coronelista, fechado para a MPB - apesar da fama internacional dos mestres João Do ato e Billy Blanco - e impondo a música brega-popularesca, sobretudo forró-brega, breganejo e tecnobrega, como mercado único. A MPB que arrume um dueto com um ídolo popularesco de plantão para penetrar nesses locais.
Jards, ao que tudo indica, não precisou de dueto com um popularesco de plantão, seja um piseiro ou um axezeiro, para tocar num festival na capital paraense. E o cantor era um ídolo difícil, em que pese a boa receptividade de sua canção famosa, “Vapor Barato”, consagrada pela voz da também saudosa Gal Costa e que a geraçãoZ conhece mais na versão da banda O Rappa.
O que é mais incrível que Jards tornou-se conhecido como compositor antes de ser cantor, e a obra é insólita, a canção "Meu Mundo é Seu", em parceria com Roberto Nascimento, gravada em 1964 por Elizeth Cardoso no disco da genial cantora, A Meiga Elizete Nº 5. Jards também é conhecido por ter tocado, arranjado e feito a direção artística do álbum conceitual Transa (1972), de Caetano Veloso.
O Rock Brasil também foi apresentado a Jards Macalé, com letra de José Carlos Capinam, através da canção pós-tropicalista “Gotham City”, baseada no famoso personagem Batman. Através da versão, nos anos 1980, pela banda Camisa de Vênus, de Marcelo Nova, tornou-se memorável o refrão “Cuidado / Há um morcego na porta principal/ Cuidado / Há um abismo na porta principal”. Indiretas à ditadura?
A intelectualidade “bacana”, defensora da música brega-popularesca, agiu de maneira hipócrita bajulando a MPB alternativa, seja Jards, Itamar Assumpção e o exímio guitarrista Lanny Gordin, que tocou com Gal Costa. A ideia é a festejada intelligentzia arrumar um pretexto para bancar a vanguardista, transformando o udigrudi emepebista num balaio de gatos, enfiando nele o elenco retaguardista da música cafona.
A ideia é misturar o joio com o trigo. Primeiro, para isolar a Bossa Nova, alvo dos ataques dos “amáveis intelectuais sem preconceito”. Segundo, para confundir os mais jovens misturando a provocação como guerrilha cultural dos “malditos” da MPB com o mau gosto resignado com o sistema dos “benditos” do brega.
A campanha do "combate ao preconceito" travou a renovação real da MPB autêntica, prolongou e ampliou a supremacia da música brega-popularesca e empobreceu o gosto musical dos jovens, a ponto dos cenários emepebistas dos anos 2010 e 2020, mesmo bem intencionados, serem desprovidos de talento impactante e passível de obter visibilidade e prestígio público.
A sociedade descolada se empolga quando, numa noitada em um bar, ouve os sucessos da música brega e as canções popularescas contemporâneas e derivadas da velha cafonice. Embriagadas, essas pessoas se animam na confusão emocional de se sentirem "felizes" ouvindo canções de frustrações amorosas, numa noite que lhes parece eterna até que a luz do Sol comece a dar seus primeiros brilhos.
A efemeridade do brega, em que pese o turbilhão de elogios tendenciosos de um lobby de intelectuais, acadêmicos, jornalistas, cineastas e artistas, exaltando os cafonas do passado e os popularescos que lhes sucederam ao longo dos anos, se dá quando, passados os louvores a esses ídolos temporários, se vê a impossibilidade deles se nivelarem aos nomes geniais da MPB autêntica, esta que, antes de colocar o P maiúsculo, tem M de música de qualidade e B de brasilidade que não se sujeita ao viralatismo dos cafonas.
E é prestando atenção no que a MPB autêntica deixou no seu legado é que vemos a diferença entre esses artistas e os ídolos comerciais do brega-popularesco, por mais que tentemos apontar uma hipotética genialidade num Odair José, numa Ivete Sangalo ou no Chitãozinho & Xororó. As choradeiras de Michael Sullivan suplicando por um espaço no grande time da MPB secarão e se perderão no tempo, enquanto os emepebistas genuínos que nos deixam se tornarão referência para as gerações futuras.
E aqui fica a gratidão pela arte audaciosa de Jards Macalé, enquanto teremos que tomar cuidado com os abismos que aparecem nas portas principais.
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