A crise na chamada Lei Rouanet é conhecida, e a polêmica se tornou ainda maior quando o ministro da Cultura, Juca Ferreira, vetou o financiamento de R$ 356 mil para a biografia da cantora baiana nascida em São Gonçalo (RJ), Cláudia Leitte, que teve proposta aprovada antes.
Segundo Juca Ferreira, o veto seguiu critérios técnicos e que a cantora, por ser bastante famosa e rica, tem recursos para bancar a produção do livro. O próprio fato de uma estrela musical da grande mídia solicitar verbas públicas para produção de um livro biográfico expôs o problema desse sistema de investimentos culturais.
Há um contexto histórico um tanto sombrio. A Lei Rouanet surgiu durante o governo Fernando Collor. Ela se baseou em projetos do secretário de Estado da Cultura, Sérgio Paulo Rouanet, que era integrante do grupo de intelectuais ligados a Fernando Henrique Cardoso, que pensava a cultura mediante critérios de mercado.
A Lei 8.313 de 23 de dezembro de 1991, como é conhecida juridicamente a Lei Rouanet, pegou para valer nos dois governos de FHC, mas tornou-se a "bandeira" da Era Lula quando o governo do petista herdou alguns projetos e práticas do antecessor.
Além disso, a Lei Rouanet entrou na Era Lula no contexto em que intelectuais da Era FHC que pensavam a cultura sob um prisma neoliberal - Paulo César de Araújo, Pedro Alexandre Sanches, Eugênio Arantes Raggi, Milton Moura, Denise Garcia etc - foi apoiar tendenciosamente o PT diante da súbita derrota de José Serra em 2002.
É algo visto até hoje, quando a família Picciani, de grandes proprietários de terra do Rio de Janeiro, foi romper com Eduardo Cunha e Aécio Neves e buscar o apoio do PT mediante pretextos de ordem financeira e política. Como frangos de uma granja que vão para o quintal do inimigo comer os milhos lá jogados. A direita se vincula à esquerda em busca de seus "milhões".
A DESCULPA DO "COMBATE AO PRECONCEITO"
Aí nós vemos um ponto muito perigoso dos critérios de investimentos da Lei Rouanet, que está cometendo uma série de injustiças à classe artística em geral como denunciaram vários atores de teatro e TV em suas entrevistas, como Fernanda Montenegro, Kito Junqueira e Marcos Caruso.
Sob o pretexto do "combate ao preconceito", o chamado comercialismo "cultural", como a música brega-popularesca, abocanha recursos públicos, enquanto quem mais precisa deles fica na mão, sem ter espaço nem investimentos em sua carreira.
Fala-se que não se pode haver "discriminação" contra o que faz sucesso e o que vende mais, porque "tudo é cultura" e por isso "todos merecem" buscar investimentos públicos para suas atividades. Só que esse papo de "combate ao preconceito" acaba favorecendo tendências mais comerciais, que de modo nenhum se comprometem à verdadeira cultura, da busca do conhecimento e transmissão de valores sociais relevantes, que já têm verbas privadas para suas carreiras.
Um grupo inexpressivo e cujo som não tem pé nem cabeça, como o Tchakabum - cuja única façanha foi lançar a dançarina Gracyanne Barbosa, mulher do cantor de sambrega Belo - , recebeu nada menos que R$ 1.629.000 para botar sua carreira adiante.
Além disso, vemos que o tosco MC Guimê (espécie de arremedo ao mesmo tempo brega e emo do Eminem) recebeu R$ 516 mil para gravação de um DVD. Luan Santana recebeu R$ 4,1 milhões para realizar uma turnê. A própria Cláudia Leitte havia recebido R$ 5,8 milhões para realizar também uma turnê.
Tem funqueiros surgidos do nada cujos empresários já têm dinheiro para bancar a turnê europeia de seus "artistas". E um nome como Wesley Safadão já é mais rico do que muito aristocrata da MPB "mais elitista", como o pessoal ligado à Bossa Nova. Nomes assim têm todo o suporte privado para investir em turnês, DVDs, livros biográficos, documentários, gravação de CD e ainda sobra para o jacbaculê nas rádios.
Os nomes da música brega-popularesca, considerado "cultura transbrasileira", "cultura das periferias", "cultura popular demais" ou "MPB com P maiúsculo" (não seria m minúsculo, de "música"?), são patrocinados até por empresas multinacionais e eles já têm visibilidade, fama e sucesso que lhes rende dinheiro, e têm o apoio até de latifundiários e barões da grande mídia.
Hoje o que se analisa é que esse "combate ao preconceito", na verdade, não passou de uma transferência de preconceito. Transferiu-se o preconceito contra tendências popularescas, que fazem estrondoso sucesso no rádio e TV expressando o "mau gosto popular", para tendências mais difíceis da MPB.
Note-se que as vítimas de preconceito passaram a ser outras: Fátima Guedes, Toninho Horta, Guinga, Turíbio Santos, Roberto Menescal, Carlinhos Lyra, Diana Pequeno, Sá & Guarabira (às vezes com o saudoso Zé Rodrix), Chico Buarque e a saudosíssima Silvinha Telles.
E estamos falando em nomes consagrados e que deixaram alguns sucessos musicais, que em dado momento tentaram atingir o grande público. Hoje os novos nomes da MPB autêntica têm poucos espaços para divulgar o trabalho, e, na TV, mal conseguem aparecer de madrugada em alguns programas de canais obscuros da TV por assinatura.
Hoje é a verdadeira cultura musical que é discriminada e injustiçada. Os bregas e derivados sempre tiveram cartaz e respaldo do mercado, até os que se diziam "injustiçados" e "discriminados". Eles apenas estavam de férias entre um trabalho e outro e resmungavam apenas porque não tocavam em universidades e museus de arte.
A choradeira funcionou e Belo foi lá se apresentar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, enquanto muitos nomes emergentes da MPB autêntica mal conseguem tocar em festas de casamentos e nos porões dos antiquários.
É isso que envolve a questão da Lei Rouanet (que Juca Ferreira admite ter muitos defeitos, e por isso havia bolado um substitutivo que está aprovado pelo Legislativo e aguarda sanção presidencial). Investir em nomes "de muito sucesso" que já têm o apoio privado que lhes investe em tudo que precisam.
Daí a farsa do discurso "anti-preconceito", que revela o preconceito mais grave, e muito mais pior, contra a cultura brasileira, porque hoje as pessoas passaram a aceitar mais a "cultura de massa", que se preocupa em mercadorias de entretenimento e não em conhecimentos e valores sócio-culturais, e discrimina aqueles que têm realmente valores artístico-culturais a desenvolver.
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