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DOCUMENTÁRIO "ETNICIZA" O COMERCIALISMO DA AXÉ-MUSIC


Em tempos de saudosismo dos cenários brega-popularescos dos anos 90, um documentário busca a reforçar a narrativa que "etniciza" demais o comercialismo musical brasileiro.

Intitulado Axé: Canto do Povo de um Lugar, de Chico Kertèsz (filho do dublê de radiojornalista Mário Kertèsz, "astro-rei" da Rádio Metrópole), tenta explicar a "crise de popularidade" desse universo musical-comercial baiano.

É uma narrativa que há pouco tempo parecia adormecida, com a intelectualidade "bacana" parecendo sossegar com seus apelos à bregalização do Brasil.

Era o governo Temer, o PT havia sido tirado do poder, e a intelligentzia não precisa patrulhar os debates culturais para barrar novos focos cepecistas e evitar sucessores de José Ramos Tinhorão, Carlos Estevam Martins ou até mesmo Guy Debord e Umberto Eco.

Era só o governo Temer sofrer uma crise aguda, havia um "bacana" empurrando uma funqueira ali, um "sertanejo" acolá.

Com Chico Buarque dedicando "Apesar de Você" a Michel Temer, tentou-se até "guevarizar" um pequeno incidente em que William Waack apenas fez uma piada irônica à cantora Anitta.

De repente, do nada, veio uma suposta "Anitta Garibaldi" a encarar um dos bastiões do jornalismo "global".

A intelectualidade "sem preconceitos", mas muito preconceituosa, tem o maior medo, o maior horror em ver um cenário similar ao da MPB dos anos 1960, registrada nos festivais da TV.

Aquilo foi um soco na barriga dos generais da ditadura militar.

Ainda na crise de FHC, a intelectualidade "bacana", com Paulo César Araújo camuflando o perfil conservador de Waldick Soriano (tão reacionário quanto Lobão) e Bia Abramo preferindo as paródicas "enfermeiras" siliconadas às enfermeiras de verdade, expressou esse horror.

Ver uma MPB visceral e uma cultura popular orgânica era demais.

Tinha que apelar para uma pretensa cultura popular em que tudo é mercadoria: do rebolado às letras anti-machistas.

A axé-music foi, aliás, símbolo dos tempos de Fernando Henrique Cardoso.

Ela foi fruto dos incentivos que Antônio Carlos Magalhães, então ministro das Comunicações do governo José Sarney, deu aos barões do entretenimento de Salvador.

Em nome do mercado turístico, criou-se uma espécie de dance music local, apenas parcialmente dotada de nomes de indiscutível valor artístico (Lazzo, Margareth Menezes, Carlinhos Brown, Olodum, Gerônimo), uns poucos alhos misturados com os bugalhos dos grandes blocos do Carnaval.

É ilustrativo que o documentário seja feito pelo filho do insuspeito Mário Kertèsz, político surgido na ARENA e que bancou o "dono das esquerdas" em Salvador.

Mário destruiu o rádio baiano, criando um cartel de emissoras FM que ao mesmo tempo barravam a segmentação musical da Frequência Modulada e sufocavam o crescimento da Amplitude Modulada, o hoje agonizante em estado terminal "rádio AM".

Kertèsz, ao lado do ruralista Marcos Medrado, criou um lobby no qual uma boa parcela de FMs despejava programação AeMizada, com chatíssimos "programas de locutor" e mofadas e decadentes "jornadas esportivas", com transmissões de futebol que parecem vindas de arquivos dos anos 1970.

Foi um prato cheio para o rádio FM se reduzir a um balcão de negócios de empresários do Carnaval baiano e dirigentes esportivos.

Daí que a monocultura da axé-music prevaleceu, banindo outras tendências musicais das rádios FM e enchessem boa parte dos horários, sobretudo matinais, com insuportáveis noticiários e debates marcados por puro pedantismo em uma ou duas horas que parecem mais de tão cansativas.

Criaram até um pastiche de "rádio rock", a ridícula 96 FM (que apelava para um nada roqueiro "momento de Ave-Maria"), para evitar que um projeto do nível da Fluminense FM irradiasse em Salvador e neutralizasse a monocultura dos axézeiros.

E aí a axé-music criou um império local, que impediu a diversificação cultural na Bahia.

E isso pela desculpa de que a axé-music "já expressava a diversidade musical".

Só que a propaganda de que a axé-music sintetizava todos os ritmos musicais - em tese, seu universo acolhia o Tropicalismo, o rock, o reggae, a Bossa-Nova, o jazz, a música africana e os ritmos hispano-caribenhos - , não se aplicava na prática.

Boa parte dos sucessos de axé-music eram marchinhas ruins nos quais o cantor, nos palcos, se preocupava mais em dar palavras de ordem à plateia antes de soltar um refrão.

E depois ainda veio os subprodutos como "pagodão", a partir do É O Tchan - que vendeu como "samba-de-roda" ou "lundu" um pastiche ruim de samba-de-gafieira - e, mais tarde, o arrocha, versão eletrônica do brega de Amado Batista.

A prepotência local da axé-music é tanta que, nas apresentações em Salvador, bandas nacionais do nível de Barão Vermelho, Skank e O Rappa se reduziam a bandas de abertura dos medalhões da axé-music.

E foi essa mesmice durante anos, monopolizando espaço nas FMs junto ao blablablá noticioso que repetia a agenda setting da mídia venal, mas temperada de opinionismo da pior qualidade.

Escândalos tiveram que ocorrer, como denúncias de "pejotização" de músicos de axé-music, caso de estupro envolvendo grupo de "pagodão" e cantor de axé-music chamando baianos de "tabaréis" para haver o desgaste dessa "dance music de baiano".

Ainda há a "regionalização" do É O Tchan e a persistência dos velhos axézeiros, mais eventuais armações como Leva Noiz e, mais recentemente, um tal de MC Beijinho (talvez para disputar, na Bahia, com o "nacional" MC G15 e seu "Deu Onda") e sua "Me Libera Nega".

Um comercialismo escancarado, mas que sofre a concorrência com o "funk" e o "sertanejo universitário", além das "furadas de cerco" do forró-brega, que sempre quis ter sua reserva de mercado na Bahia.

Mas cujo monopólio de narrativa de uma intelectualidade que "etniciza" e "guevariza" o comercialismo musical brasileiro insiste em dizer que é "fenômeno cultural".

Seria como dizer que a fast food da rede McDonald's fosse um primor de nutrição alimentar e se insistisse nesse discurso o tempo todo.

A intelectualidade "bacana" de Salvador até sofreu uma baixa, já que resta apenas Milton Moura.

Roberto Albergaria, que sonhava em "mcdonaldizar" a cultura baiana, faleceu há pouco tempo.

Resta então o documentário do filho do "astro-rei" da Rádio Metrópole, para realimentar narrativa tão ambiciosa.

Desta vez, perguntando porque a axé-music decaiu.

Ora, ela decaiu pelos limites que o pop comercial apresenta. O comercialismo é tão culturalmente superficial que, um dia, inevitavelmente, cansa.

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