Talvez as esquerdas devam parar para pensar quando o assunto é cultura popular.
Certa vez, se sugeriu a música de Chitãozinho & Xororó como opção à obrigatoriedade de se ensinar Pai Nosso e os hinos da pátria em escolas de Barra Mansa.
Aecistas e católicos, Chitãozinho & Xororó seriam os primeiros a concordar com o prefeito da cidade fluminense.
Eles cantaram Ave Maria de Gounod, na versão em português. Foram criados sob tradições ufanistas. São abertamente conservadores. São os artistas preferidos dos ruralistas.
Difícil guevarizar uma dupla assim. Mas se tem gente querendo guevarizar até uma dupla "sertaneja" aecista, então não sabemos o que é cultura popular de esquerda no Brasil.
As gerações que não puderam ver Waldick Soriano defendendo valores machistas e exaltando a ditadura militar devem parar um pouco.
Esquecer um pouco a plateia de proletários, negros, índios e casais LGBT e ver, no palco e nos bastidores, os ídolos jabazeiros patrocinados pela mídia hegemônica e suas rádios associadas.
Boa parte do que conhecemos como o "popular demais" foi difundido, na ditadura militar, por uma parcela secundária da mídia hegemônica.
Não são emissoras de TV nem de rádio alternativas, mas emissoras comerciais que não necessariamente faziam parte dos Diários Associados ou das Organizações Globo.
Em boa parte eram controladas por oligarquias políticas e empresariais que apoiavam o governo militar.
O que deu na cabeça das esquerdas encamparem a trilha sonora desse faroeste sem armas, mas dotado de processos de inferiorização cultural dos pobres, não dá para entender.
Um dos artífices desse processo de domesticação cultural dos pobres foi o comunicador e o então aspirante a empresário de TV Señor Abravanel, o Sílvio Santos.
Ele foi o maior divulgador da música brega de todo o país, contrariando a visão oficial difundida por Paulo César de Araújo em Eu Não Sou Cachorro Não (Record, 2000).
Araújo apostou numa visão, simplória e maniqueísta, de que as rádios que tocavam música brega haviam sido automaticamente acionadas para combater a ditadura militar e seu AI-5.
Se fizer um levantamento das rádios que tocavam música brega entre 1968 e 1978, os esquerdistas médios cairiam da cadeira: eram rádios que apoiaram com gosto a ditadura.
Pois Sílvio Santos comandava o espetáculo, ele um ex-camelô que se tornou um dos barões da grande mídia.
Como apresentador de televisão, Sílvio tem qualidades admiráveis. É jovial, interage com o público e garante muito entretenimento.
Mas ele tem seu lado conservador, bastante sombrio.
Sabemos o quanto é difícil questionar "deuses".
Na religião que abandonei, paranormais que são dublês de filantropos não podem ser questionados, mesmo pessoas com alguma visão racional se sentem seduzidas pela suposta bondade deles.
Um deles promoveu um evento "pacifista" que serviu de lançamento da indigesta "ração humana" do prefeito de São Paulo, João Dória Jr., e ninguém percebeu.
É o complexo de vira-lata, porque no Primeiro Mundo se podem derrubar totens tidos como "vacas sagradas".
Dito isso, é complicado relatar o lado sombrio de Sílvio Santos.
Através das "colegas de trabalho", criou-se um padrão caricato de mulher "popular".
E, a partir dessa caricatura, vemos um outro estereótipo de "solteira" além da mulher-objeto, que é o da "maria-coitada".
A "maria-coitada" é uma solteirona que brinca de ser mãe com o afilhado ou irmão mais novo, e fica ouvindo sucessos melosos do "pagode romântico".
Sílvio Santos é moralista, conservador embora com um certo populismo, e fez propagar um paradigma de "povo pobre" que as esquerdas morderam como isca.
O Chacrinha da fase anos 1960-1970, antes de sucumbir à fase jabazeira de seus últimos anos, rejeitava os calouros medíocres.
Não era um Flávio Cavalcânti defendendo a boa qualidade musical quebrando discos medíocres, mas era um crítico dos "artistas" desafinados e atrapalhados.
Com Sílvio Santos, os ídolos musicais que receberiam abacaxi do Chacrinha ou teriam discos quebrados por Flávio Cavalcânti ganhariam cadeira cativa. Sobretudo no Qual é a Música.
No âmbito comportamental, foi através de Sílvio Santos, não só ele mas principalmente ele, que a visão caricatural do povo pobre se fez prevalecer.
Combinado com o "banho de loja" da Rede Globo nos anos 80, a breguice da Record e do Programa Sílvio Santos (mais tarde da TV Studios / SBT), com Bandeirantes e a agonizante Tupi de carona, formatou-se o brega-popularesco dos anos 90 até agora.
As esquerdas acabaram tomando como sua um paradigma de "cultura popular" que, na verdade, tem mais de reacionário, o mito da "pobreza linda" e do "pobre patético, mas feliz".
No caso do SBT, a sobremesa veio depois, quando alguns dos contratados revelavam o teor conservador do seu dono.
Nomes como Rachel Sheherazade pegavam carona no questionamento dos mitos da "pobreza linda" para despejar comentários reacionários no SBT.
Depois ela se conteve, mas nas mídias sociais ela continua fazendo das suas.
Mas, muitos anos antes dela, o conservador Bóris Casoy trazia o "opinionismo" nos telejornais, o que parecia válido como novidade na época, vide a leitura de teleprompter do Jornal Nacional.
Hoje o âncora jornalístico nem serve tanto, vide o contraponto da Internet que oferece mais informações de qualidade do que a mídia hegemônica.
No humor, temos Danilo Gentili hoje despejando reacionarismo, só tentando parecer mais engraçado que, por exemplo, Marcelo Madureira.
Gentili recebe funqueiros numa boa - as esquerdas médias não conseguem entender - e é acompanhado pela banda Ultraje a Rigor, que eu adorava, mas cujo líder, Roger Rocha Moreira, tornou-se um reacionário da pior espécie.
Há outros exemplos. O informativo "Semana do Presidente", durante o período militar, como uma mneira de agradar o general que está no poder.
Há ocaso de O Povo na TV / Aqui Agora, que propagou os paradigmas dos programas policialescos, marcados pelo moralismo retrógrado e punitivista.
Há o Viva a Noite, de Gugu Liberato, ele um paladino das baixarias televisivas enquanto fazia pose de bom-moço combinando apelos emocionais com sensacionalismo.
Mas o animador maior também não está fora do contexto conservador e mercantilista.
O próprio Sílvio Santos também se revelou pão-duro quando se recusou, numa conversa com o ator e diretor teatral Zé Celso Martinez Correia a ceder um terreno para um parque. É uma disputa que dura 37 anos, ou seja, desde 1980, quando o SBT ainda não existia.
Sílvio quer construir torres residenciais e um shopping center. O terreno é vizinho ao Teatro Oficina, de Zé Celso. O "diálogo" foi mediado pelo prefeito de São Paulo, João Dória Jr..
O vereador Eduardo Suplicy também esteve presente, mas só como observador da conversa.
O Condephaat, entidade estadual (São Paulo) de patrimônio histórico, reverteu, mediante ação movida pelo apresentador, uma decisão que proibia construir prédios e edifícios comerciais no terreno.
Foi do Condephaat que veio o antropólogo Antônio Augusto Arantes Neto para presidir o IPHAN, em 2004, abrindo na autarquia federal um concurso em 2005 no qual participei e, infelizmente, não fui aprovado.
Num dado momento, quando Zé Celso insistia que o terreno deveria ser um parque, Sílvio ironiza, dizendo que "vai transferir a cracolândia" para o parque e "dar um prêmio para o drogado que tiver mais destaque no dia".
Sílvio Santos prefere a exploração comercial do terreno do que os interesses sociais, ainda mais sendo um terreno vizinho ao Teatro Oficina.
Meses antes, Sílvio Santos havia tido problemas com a Justiça porque lançou campanhas grotescas em defesa das medidas econômicas conhecidas do governo Michel Temer.
Sílvio, que apoia o temeroso governante, e dele recebeu generosas verbas - e, mesmo assim, o homem-sorriso demitiu muitos profissionais - , veiculou as campanhas sem esclarecê-las aos telespectadores.
Eram apenas peças publicitárias que mais forçavam o povo a apoiar as medidas - as tais reformas trabalhista e previdenciária - através de argumentos chantagistas.
O SBT teve que parar com as campanhas, embora seus noticiários continuassem mostrando uma visão positiva do desastrado governo.
Isso vem do mesmo Sílvio Santos que, através de um pequeno partido conservador, tentou ser candidato à Presidência da República, dizem, para frear o fenômeno Luís Inácio Lula da Silva.
A candidatura chegou a render alguns vídeos de campanha, mas depois ela foi impugnada.
O Sílvio que emprega Danilo Gentili e Rachel Sheherazade e põe um inexperiente que mal chegou aos 18 anos, Eduardo Camargo, para apresentar um telejornal, pode ser um animador e tanto.
Mas, encerrando o espetáculo do circo do homem-sorriso, entra o empresário conservador que fez propagar uma abordagem caricatural de "cultura popular".
E como Sílvio Santos também foi conhecido pelas pegadinhas, ele havia armado essa pegadinha do brega para as esquerdas.
Elas pensavam que o brega era uma revolução guevariana surgida pelos auto-falantes da Vanguarda Popular Revolucionária.
Grande engano. O brega e seus derivados, como o "funk", são fruto de um imaginário reacionário trazido pelas emissoras de rádio e televisão durante o regime militar.
Daí que a bregalização não assusta Danilo Gentili, que recebe seus ídolos numa boa. A pegadinha pegou as esquerdas médias desprevenidas.
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