Nas esquerdas, os debates culturais se esvaziaram porque gente de fora, mas dotada de uma tendenciosa simpatia pelo esquerdismo, impôs um ponto de vista nada progressista.
A questão não se limita apenas ao fato dessa intelectualidade alienígena gourmetizar a chamada "cultura de massa". Até aí, em tese, nada demais.
O problema está no aspecto mais duvidoso da retórica do "combate ao preconceito": aceitar supostas formas de expressão popular, dita "cultura das periferias", que trata o povo pobre de maneira caricatural, portanto, preconceituosa.
Nessa propaganda travestida de etnografia, da qual ideólogos lanção mão de recursos narrativos trazidos por autores como Marc Bloch e Tom Wolfe, essa maquiagem teórica seduziu muita gente boa dentro das esquerdas.
Com isso, paradigmas próprios da Rede Globo e da Folha de São Paulo e que se encaixariam melhor num projeto cultural do PSDB, foi acolhido, de maneira bovina, pelas esquerdas.
Sem exercer o senso crítico, as esquerdas morderam a isca e perderam o protagonismo. Por ironia, gente de direita fez o que as esquerdas recusavam a fazer, em nome do tal "fim do preconceito": criticar o processo de idiotização cultural do povo brasileiro.
Haver divergências aqui e ali é saudável, mas há o risco de haver também uma "patrulha do estabelecido", mesmo sem querer.
Gente supostamente "isenta", que está mais preocupada em puxar os debates para trás e deixar tudo como está, apesar dos defeitos e imperfeições.
E aí há o pensamento desejoso que faz as esquerdas idealizarem paradigmas de centro-direita, trazidos pela mídia corporativa.
O caso do "funk" é ilustrativo: as esquerdas ignoraram que a popularização do ritmo, caraterizado por um comercialismo evidente, se deu pela campanha intensa e obsessiva das Organizações Globo.
O chamado "popular demais" (brega-popularesco) também é uma colcha de retalhos envolvendo abordagens nada progressistas trazidas por emissoras como o SBT, hoje reduto do bolsonarismo.
Tudo por causa de uma suposta simbologia que mostra pobres aparentemente felizes, as esquerdas passaram pano em muita barbaridade popularesca.
Pela dor de cotovelo causada pela bolsonarização da dupla Zezé di Camargo & Luciano (falsos ícones de esquerdismo cultural), as esquerdas cometeram a gafe de substituir a dupla goiana pelos tucanos de carteirinha Chitãozinho & Xororó.
Ainda mais quando a dupla paranaense passou a explorar mais a cover da canção "Evidências", sucesso brega do bolsonarista José Augusto.
É muito cômodo usar o pensamento desejoso, usar uma retórica "isenta", para deixar "tudo como está".
Para muitos, "imparcialidade" é deixar as coisas como estão, em nome de um suposto equilíbrio entre qualidades e defeitos.
Usa-se o discurso da "concessão", que em tese abre mão de uma visão glorificada de um fenômeno em evidência, e negocia-se a "discordância" de forma que a problemática não fosse problematizada, mas aceita de maneira submissa.
Afinal, a tal fenomenologia vigente é o que "está aí" e, aparentemente, é compartilhada por um sem-número de pessoas.
Fácil idealizar as "mulheres-objetos", que tratam os glúteos e bustos como razão única de suas vidas, como se fosse um modelo de "feminismo popular".
Fácil, na zona de conforto de aceitar tudo que é "sucesso popular", dar o mesmo peso do grotesco É O Tchan aos Mutantes e vender o grupo de "pagodão" como uma falsa vanguarda cultural.
Fácil idealizar os neo-bregas dos anos 1990 como uma suposta "nova MPB progressista" só porque são o contraponto da "mesmice" de Chico Buarque que só a intelectualidade burguesa (mesmo a dita "de esquerda") está cansada de ouvir, apesar de 95% do povo pobre desconhecer seu repertório.
O Brasil patrulha tanto o "estabelecido" que permitiu que Jair Bolsonaro fosse eleito, diante de várias condições adversas que as esquerdas não perceberam contra si.
Os debates que deveriam ser públicos tornaram-se privados.
A campanha do suposto "combate ao preconceito" isolou os debates esquerdistas e criou uma "bolha" na qual as esquerdas já começam a se preocupar, ainda que tardiamente.
Afinal, o povo pobre foi brincar o "popular demais", porque a intelectualidade "bacana" disse que aquilo era "ativismo e provocatividade".
Foi tanto discurso martelado, supostamente, "contra o preconceito" - mas associando formas altamente preconceituosas de "expressão popular" - , que a campanha perdeu o controle e o que terminou não foi o preconceito, mas o Ministério da Cultura e a Lei Rouanet, entre outros.
Apesar desses desastres, os intelectuais "bacanas" continuam blindados pelas esquerdas, porque eles fazem um discurso efusivo e enganoso.
Contaminam ideias culturais com princípios do neoliberalismo com um verniz neo-tropicalista que impede qualquer um de ver ecos de Paulo Guedes no "popular demais".
Existe trabalho precarizado até no "funk" e os esquerdistas se iludem com o mesmo discurso bolsonarista de "geração de mais empregos", que falsamente se "esquerdiza" através de doces falácias.
E aí vemos como as forças progressistas ficaram atônitas ao ver quantos bolsonaristas e temerosos havia no "popular demais".
Não quiseram questionar, exercer o senso crítico, desconfiar do discurso bondoso de um intelectual "bacana", que bajula tanto Lula, Dilma e o PT que coloca o nome "Lula" como alcunha para seu perfil no Twitter.
Hoje a atual Secretaria Especial da Cultura - o que restou, formalmente, do antigo MinC - está sendo aparelhada por gente ultraconservadora, que põe em risco a cultura de nosso país.
As esquerdas acolheram os "amigos da onça" que queriam um Brasil mais brega, assinando embaixo em tudo que Sílvio Santos vende como "popular", e perderam-se no caminho.
O debate deveria ser dotado de mais senso crítico, em vez de creditar os glúteos volumosos, os chifres com chapéu de caubói, os mullets e os vocais esganiçados como "esperança de progressismo para o Brasil". Um pouco de desconfiômetro não iria fazer mal.
Porém, o estrago foi feito. E o "combate ao preconceito" só trouxe mais preconceito, em doses terraplanistas e violentas.
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