O Brasil é um país estúpido, medíocre e tão provinciano que não consegue perceber seus próprios talentos. De vez em quando surgem absurdos de situações de pessoas de grande talento serem condenadas à pobreza ou ao abandono.
Em 1993 o cantor e músico Lúcio Alves, uma das maiores vozes do país e um dos precursores da Bossa Nova, tendo sido um dos que anteciparam o espírito bossanovista em uma década, ou seja, nos anos 1940, morreu depois de tanto tempo doente e abandonado.
Acusada de improbidade por causa de um filme por ela dirigido, a atriz Norma Bengell chegou também a ser abandonada, ela que foi uma das maiores musas da virada dos anos 1950 para os 1960 e atuou em grandes filmes do cinema brasileiro. Morreu poucos anos depois de tentar sucesso como uma personagem lésbica na sitcom Toma Lá, Dá Cá, da TV Globo.
Houve também o caso do grande baixista Renato Rocha, conhecido como Negrete e Billy, que integrou a Legião Urbana na época dos seus três primeiros LPs, deixando sua marca em músicas como "Será", "Ainda é Cedo", "Tempo Perdido", "Geração Coca-Cola", "Faroeste Caboclo" e "Que País é Este?".
Negrete, falecido este ano, foi jogado na miséria, era um vigoroso baixista e um artista carismático e muito admirado pelos fãs do Rock Brasil. Era um músico que deveria estar vivo até hoje e gravando álbuns e excursionando, em vez de ter sido entregue à pobreza, às drogas e ao álcool que abreviaram sua vida.
O caso, agora, é de um grande mestre do teatro e da cultura brasileira, que esperamos que viva muitíssimo, porque tem lucidez e talento de sobra para nos brindar com novos trabalhos. E que, apesar dos 77 anos, têm um grande compromisso histórico com a modernidade e com a juventude brasileira.
Trata-se de Luiz Carlos Maciel, que eu tive o prazer de entrevistar, por e-mail, com um modesto questionário que nem de longe abrangeu a sua rica trajetória de mais de 50 anos. Esta entrevista, feita no começo de 2002, publiquei na íntegra no meu livro Pelas Entranhas da Cultura Rock.
Sua vida e carreira dá um enorme livro, de tantas e diversificadas atividades que teve e com tantas personalidades com quem conviveu.
Maciel, que foi jornalista, diretor e ator teatral, ensaísta, e integrou a a fase áurea do periódico de humor e cultura O Pasquim, convivendo com Paulo de Tarso, Henfil, Millôr Fernandes, Jaguar, Ziraldo, Glauber Rocha e tantos outros, fez um anúncio melancólico que denunciou sua condição de desempregado. Sim. Desempregado, uma das mentes mais brilhantes de nosso país. Eis o texto:
"Um tanto constrangido, é verdade, mas sem outro jeito, aproveito esse meio de comunicação, típico da era contemporânea e de suas maravilhas, para levar ao conhecimento público o fato desagradável de que estou sem trabalho e, por conseguinte, sem dinheiro. É triste, mas é verdade. Estou desempregado há quase um ano. Preciso urgentemente de um trabalho que me dê uma grana capaz de aliviar este verdadeiro sufoco. Sei ler e escrever, sei dar aulas, já fiz direções de teatro e de cinema, já escrevi para o teatro, o cinema e a televisão. Publiquei vários livros, inclusive sobre técnicas de roteiro, faço supervisão nessas áreas de minha experiência, dou consultoria, tenho – permitam-me que o confesse – muitas competências. Na mídia impressa, já escrevi artigos, crônicas, reportagens… O que vier, eu traço. Até represento, só não danço nem canto. Será que não há um jeito honesto de ganhar a vida com o suor de meu rosto? Luiz Carlos Maciel. lcfmaciel@gmail.com".
Constrangedor é ver uma grande figura que deu contribuições valiosas à nossa cultura ser jogada ao desemprego. Pode ser por causa da velhice, mas Maciel é mil vezes mais jovial do que zilhões de "sertanejos universitários" juntos e, como idoso, dá um banho de juventude nos granfinos empresários, médicos e economistas que começam os 60 anos brincando de serem velhos.
Até porque Maciel viveu um tempo em que o Brasil era moderno de verdade e é um dos cada vez mais escassos sobreviventes desses tempos. Vivenciou as agitações culturais do Brasil a poucos anos do golpe militar e tentou vivenciar os poucos e difíceis focos de resistência cultural já no Brasil ditatorial.
Ele viveu a fase brilhante da televisão brasileira, tendo feito parte do histórico Jornal de Vanguarda, da TV Excelsior. Escreveu diversos livros sobre comportamento e Contracultura, analisando as realidades estrangeira e brasileira, mergulhando fundo no que pensava a "garotada" dos anos 1960.
Sua bibliografia, seja em volumes inteiros, seja em capítulos, também apresentava ao público personalidades como Norman O. Brown, Norman Mailer, Ronnie Laing, e explicava melhor nomes conhecidos mas não devidamente compreendidos como Jimi Hendrix e Jean-Paul Sartre.
Lendo seus livros, nem precisa recorrer a ficções superficiais e estereotipadas como a minissérie de TV Anos Rebeldes, da Rede Globo, porque Maciel fazia um estudo aprofundado do que era a juventude dos anos 1960, muito além dos clichês da maioria dos relatos sobre movimentos estudantis e festivais da canção da época.
Maciel era um intelectual como devia ser, no sentido de um pensador e pesquisador sem deslumbramentos, diferente do que vemos hoje em "farofafeiros" e similares, que beijam na boca do "deus" mercado e fingem que investem na "provocação" e na "polêmica".
Tenho duas sugestões para aproveitar o talento de Luiz Carlos Maciel. Uma é a TV Cultura investir num novo programa de entrevistas para substituir o Provocações do saudoso Antônio Abujamra. Com certeza, Maciel lançaria muitas ideias, entrevistaria pessoas de valor cultural indiscutível e criaria um programa muito dinâmico e atual.
Outra sugestão é chamá-lo para dirigir peças teatrais, e, neste caso, a esposa de Maciel, a atriz Maria Cláudia, que fez sucesso na TV nos anos 1970, pode também ser chamada. O teatro precisa desse vigor criativo de Maciel, já que infelizmente o cenário teatral regrediu para uma forma piorada do contexto elitista-estrangeirizado dos tempos do Teatro Brasileiro de Comédia.
Não considero Maciel velho e acredito no seu potencial de revitalizar a cultura brasileira com sua contribuição valiosa e criativa. Um artista destes não pode ficar desempregado e jogado ao abandono, até pela sua longa e riquíssima experiência de vida.
Ele é um dos poucos grandes que continua vivo e, com certeza, com uma vontade juvenil de criar, lançar ideias e renovar o hoje tão acomodado cenário cultural, num Brasil em que a maioria das pessoas só quer saber de brincar com o WhatsApp patinando os dedos das mãos nos celulares.
O Brasil precisa valorizar talentos como Luiz Carlos Maciel, que tanto contribuíram e querem contribuir para o país. É uma forma de reconhecer e apreciar quem tanto lutou para tornar a vida brasileira mais criativa e proveitosa.
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