Há um bom tempo a Bahia não é mais o "paraíso" do imaginário dos brasileiros.
A capital, Salvador, está ficando, realmente, mais violenta, não por causa do maniqueísmo estatístico dos "Atlas da violência" dos últimos cinco anos, feitos mais para intimidar o turismo no Nordeste.
É porque, depois do golpe político de 2016 e após décadas de coronelismo e do desprezo do carlismo (movimento político liderado por Antônio Carlos Magalhães) às classes populares, o povo pobre está revoltado e, sem ter como recorrer, parte dele está espumando de ódio e vingança.
Cidades do interior da Bahia parecem nunca sair do século XIX. O êxodo rural transformou Salvador numa cidade complicada e perigosa.
Não tendo como acolher todo baiano do interior, as desigualdades aumentam, a pobreza cresce e, com isso, a violência daqueles que, com adversidades em excesso, só conseguem, pela sua educação moral precária, reagir através do ódio e da revolta.
Temos uma burguesia baiana esnobe, hipócrita, provinciana, que olha para seu umbigo e fica brincando de ser paulista nas festinhas regadas a axé-music no Corredor da Vitória ou na Costa do Sauipe.
Temos uma mídia que se divide entre a insipidez da Rede Bahia (até menos reacionária do que se pensa), o bonapartismo neopenteque da Rede Record e o coronelismo radiofônico de baronetes midiáticos como Mário Kertèsz, Marcos Medrado etc.
Religiosamente, ainda temos dois farsantes religiosos autoproclamados "médiuns" que exercem sua tirania religiosa mal-disfarçada por discursos suaves ou por piadas ofensivas que atingem até louras falsas, gordas e sogras.
Musicalmente, temos uma axé-music cheirando a mofo tóxico - com um Netinho bolsomínion e um Bell Marques sem ter mais o que fazer na carreira - , além de ritmos pavorosos como o "pagodão" (É O Tchan, Harmonia do Samba, Psirico etc), arrocha e pisadinha.
Ou seja, nada daquela Salvador imponente que, no decorrer da década de 1950 até 1964 respirava progresso cultural, quando mesmo a assimilação tardia do Modernismo dos anos 1920 foi digerida com muita criatividade e espírito de contemporaneidade.
Não moro mais em Salvador desde 2008 e a última vez que fui para lá foi para fazer um concurso público em 2014.
Até mais ou menos 2017 havia alguma esperança de progresso. Obras urbanas faziam com que Salvador reproduzisse aspectos positivos de São Paulo, puxadas pelo metrô. A presença do governador petista Rui Costa dava a esperança de que algo benéfico para o povo pudesse ser realizado na Bahia.
A competição política do governador Rui Costa com o então prefeito ACM Neto prometia ser saudável no avanço da urbanização na capital baiana.
Mas o golpe político de 2016 e o bolsonarismo travaram isso, além da Covid-19 que fez parar o Brasil.
E aí a Bahia passou a sofrer os efeitos dos resíduos sociais da antiga fase coronelista de 1964-2010 e das complexas situações existentes depois de então.
Para complicar, os desequilíbrios ambientais fizeram surgir os temporais em pleno verão baiano.
Que eventualmente ocorriam temporais no verão baiano, isso é verdade. Já enfrentei dias de muita trovoada e chuvas intensas em Salvador entre novembro (primavera com sensação térmica de verão) e fevereiro.
Mas ultimamente a situação tornou-se insustentável. 72 cidades do interior da Bahia foram atingidas pelas enchentes. Pessoas sofrem com água até o pescoço. Barragens foram rompidas. Cidades em níveis calamitosos.
Ninguém fala em desfavelização ou em assistir o povo pobre em qualquer situação. Em vez disso, a "pobreza linda", de maneira hipócrita, exaltava o mito das "periferias prósperas", como se os ambientes de pobreza e miséria vivessem num eterno carnaval.
Cidades do interior há muito se tornaram meros currais políticos, com prefeitos de mentalidade coronelista despejando em Salvador pessoas doentes e miseráveis - incluindo mendigos, por exemplo - em ônibus da Secretaria de Saúde, como se tais pessoas fossem meros lixos humanos.
O desenvolvimento estadual não acontecia, e o mais gozado disso tudo é que parte dos políticos fisiológicos e coronelistas da Bahia passaram a apoiar Lula e o PT, na hipocrisia dos políticos baianos forjarem pretenso bom mocismo.
Afinal, antes do PDT arruinar o legado do fundador Leonel Brizola, já tínhamos em seus quadros partidários o ruralista Marcos Medrado, um dos "donos" dos subúrbios baianos, manipulando o povo pobre com sua Salvador FM. Mas há um bom tempo ele saiu do PDT.
Um Estado culturalmente devastado, com Bell Marques chegando a xingar os interioranos baianos de "tabaréis" ("matutos") e grupos de "pagodão" promovendo racismo contra os próprios negros, com o estereótipo ofensivo do "putão", a caricatura do rapaz negro "abobalhado e tarado", vive séria crise.
O povo pobre desamparado, cidades do interior paralisadas no tempo, cenário cultural tenebroso, mídia coronelista, políticos fisiológicos e ainda a devastação ambiental de Jair Bolsonaro destruindo Amazônia e Pantanal, mas causando efeitos no resto do Brasil.
Um grande trabalho de reconstrução, caríssimo, deve ser feito, com ampla assistência às vítimas dos temporais e enchentes, que perderam muita coisa e estão traumatizadas com essa tragédia que, até o último dia 27 de dezembro, matou 20 pessoas.
Há muitos desabrigados, há pessoas doentes precisando de cuidados e outras que teriam contraído doenças com o contato com a água suja e possíveis focos de contaminação. E muita gente com água até o pescoço, sofrendo angústias diversas que, de tão terríveis, muitos têm medo de imaginar.
Ver a Bahia sucumbindo a essa tragédia toda, com violência e temporais, é de doer o coração, mas é um drama consequente de anos e anos de descasos, oportunismos e muita hipocrisia.
Com muita certeza, essa tragédia da Bahia não cabe na alegria-mercadoria da axé-music.
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