Difícil encarar o comercialismo fácil do "popular demais" ou brega-popularesco como se fosse uma suposta causa bolivariana ou guevarista.
Mesmo o "sertanejo", abertamente conservador e alinhado com os políticos de direita, chegou a receber tentativas de abordagem falsamente esquerdista.
A ideia dos intelectuais "bacanas" que defendem o "popular demais" é bem clara.
Esqueçam o talento dos intérpretes. O palco é só um detalhe. Se a plateia é superlotada, contém pobres, negros e LGBT, qualquer um que estiver no palco é tido como "libertário".
Durante muito tempo prevalecia essa ideia e tive muita dificuldade em questioná-la, porque eu era um "patinho feio" na mídia esquerdista de 2010-2014.
O caso Procure Saber foi um divisor de águas e revelou as posturas complexas entre artistas e escritores.
A revelação se deu nem tanto pelo conflito entre quem defendia biografias não-oficiais ou as rejeitava, mas por alguns detalhes bastante complexos.
Primeiro, a ruptura definitiva da intelectualidade pós-moderna com Roberto Carlos, depois de tanto apoiá-lo como "modernizador da Música Popular Brasileira".
Isso por causa do conflito entre Roberto e um dos "papas" da intelectualidade "bacana", Paulo César de Araújo.
Segundo, porque a ojeriza a Chico Buarque, que estava no Procure Saber, criou duas posturas então inusitadas.
Pedro Alexandre Sanches foi recorrer à defesa de dois astros da Rede Globo, Luan Santana e Thiaguinho, para se contrapôr a Chico Buarque, e "se uniu" a Reinaldo Azevedo no coro contra o veterano compositor.
O episódio de 2013, junto com os rolezinhos do "funk", anteciparam o "Fora Dilma" no âmbito cultural.
O "popular demais" ainda tentava cortejar as esquerdas, mas no fundo queria o governo Michel Temer, não necessariamente pelo apoio a ele, mas porque o "popular demais" é movido pelo mercado.
Há muito a cultura popular está privatizada e quase não temos, pelo menos no plano da repercussão e visibilidade altas, grandes artistas populares do passado.
O que temos são subcelebridades musicais, fetiches da fama e do entretenimento que, musicalmente, soam muito medíocres.
Alguns intelectuais complacentes tentam dizer que a música "tem qualidade". Impossível.
Em estado sóbrio, não há como ver qualidade em músicas que, quando muito, são "arrumadinhas" de maneira bastante burocrática.
No plano ideológico, o "popular demais" costuma ser despolitizado. Mas se há alguma necessidade de politização, a ideia é sinalizar pelo lado conservador e dominante, embora moderado.
Se bem que alguns nomes com trânsito no âmbito popularesco passam a apoiar até Jair Bolsonaro, como Ronaldinho Gaúcho (que chato, os dois são de 21 de março, mas não reparto meu bolo de aniversário com eles!).
Recentemente, o ícone do "sertanejo universitário" (que não é caipira e só é "universitário" num contexto de um ensino superior sucateado) Gusttavo Lima apelou também de forma similar.
Indignado com um assalto que sofreu, ele apareceu nas mídias sociais exibindo fotos com uma arma e usando uma hashtag que sugere apoio ao reacionário Jair Bolsonaro.
Num contexto bem mais ameno, o ídolo da vez, a funqueira Jojo Toddynho, foi ver o apresentador Sílvio Santos, dando fim às esperanças da intelligentzia que via nela uma pessoa que iria pôr Lula na Presidência da República e proteger o venezuelano Nicolas Maduro da invasão dos EUA.
Ela foi visitar o apresentador e dono do SBT numa péssima fase dele, que apoia abertamente o governo Michel Temer e empregou humoristas e jornalistas reacionários.
A mais nova aposta do "bolivarianismo cultural" que só está na imaginação da intelectualidade "mais legal do Brasil" foi visitar um aliado de Michel Temer.
O "popular demais", não só na música mas também no comportamento, é movido por interesses mercadológicos, e entrou de penetra na festa do esquerdismo apenas por superestimar alguns aspectos comportamentais.
No entanto, o "popular demais" nunca contrariou os interesses dos barões da grande mídia.
As esquerdas morderam a isca por alguns aspectos comportamentais, como superestimar as críticas negativas aos "sucessos do povão" e algumas pequenas subversões sociais.
Resultado, o comercialismo cultural do brega-popularesco cresceu tanto que, de hegemônico nos anos 90, passou a ser totalitário nos últimos tempos.
Tanto que cria um esquemão de eventos e apresentações ao vivo que bloqueiam o acesso de nomes da MPB e do Rock Brasil.
Isso a cantora Tiê, que recentemente foi chamada de "vendida" por gravar dueto com Luan Santana, não vai dizer abertamente.
Ela foi orientada a dizer que "decidiu espontaneamente" fazer dueto com o cantor, recusando-se a admitir que foi uma "recomendação da indústria fonográfica".
A verdade é que ela optou pelo dueto porque quer se apresentar nos redutos de Luan: o interior do país, o Centro-Oeste, o Norte-Nordeste, o interior paulista.
Ela quer tocar nos festivais de inverno no Mato Grosso, São Paulo ou Paraná. A moeda de troca é um dueto com um ídolo popularesco. Daí o Luan Santana.
Oficialmente, Luan Santana passa por "coitadinho", como um suposto rejeitado que quer estar "no primeiro time da MPB" ao lado da Tiê.
Engano. Quem é a coitada na situação é a Tiê, que precisa desse dueto para viabilizar sua presença em mercados inflexíveis dominados pelo brega-popularesco.
Luan Santana é o mainstream do mainstream, o establishment do establishment, ele tem espaços demais de divulgação e sucesso, e, ainda que precise do rótulo MPB para ser "levado muito a sério", ele não necessita lutar por mais espaços.
Quem precisa são emergentes do Rock Brasil e da MPB, como Tiê, que apenas dizem que "gostam" de botar música em trilha de novela ou fazer duetos com ídolos popularescos como uma forma de educação.
É uma maneira de ser simpático, de parecer flexível, porque o mercado não gosta de gente com personalidade difícil.
O "popular demais" é isso, é mercado, consumismo, poder midiático. As esquerdas não entenderam isso e defenderam essa causa como galinhas defendendo desesperadamente uma raposa.
E aí, tentando guevarizar o "popular demais", desviou-se o povo dos debates estratégicos durante o Brasil de Lula e Dilma Rousseff.
Agora a intelectualidade "bacana" paga o preço: abriu caminho para o governo Michel Temer, e agora deixa os tanques invadirem a "periferia feliz" do "funk", do tecnobrega e similares.
Chorem, intelectuais "bacanas". Agora quem está descendo até o chão é a situação do nosso Brasil.
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