Era uma vez uma intelectualidade orgânica adestrada pelos setores da Universidade de São Paulo ligados ao PSDB.
Era uma intelectualidade híbrida, que misturava o modus operandi do IPES-IBAD com alguns trejeitos da crítica musical porralouca e dos militantes tropicalistas.
Antropólogos, sociólogos, cineastas, críticos musicais e outros se empenhavam em fazer apologia à cultura popularesca e ultracomercial.
A ideia é evitar que se repetisse o que ocorreu nos primórdios da ditadura militar.
Naquela época, a cultura popular de raiz e os artistas sofisticados e engajados se articularam para criar uma frente de resistência ao governo militar.
O objetivo da intelectualidade orgânica dos anos 90, portanto, era de substituir essa frente pela apologia ao "mau gosto popular".
A desculpa mais usada: o "combate ao preconceito" aos fenômenos "populares demais" marcados pela pieguice, pela mediocridade, pelo pitoresco, pelo aberrante, pelo ridículo.
A falácia apresentou duas principais estranhezas, nunca oficialmente contestadas.
Primeiro, que "combate ao preconceito" se espera na aceitação de fenômenos "populares" que tratam o povo pobre de maneira preconceituosa, estereotipada e caricatural?
Segundo, como empurrar o "popular demais" para a pauta das esquerdas se ele floresceu sob cenários sócio-políticos ultraconservadores e foram patrocinados pela mídia venal (Globo, Folha, SBT etc)?
O discurso de apologia ao "popular demais", com desculpas que, além do "combate ao preconceito", falava-se em "sucessos das periferias", foi empurrado goela abaixo para as esquerdas, que morderam a isca.
Nesse discurso, superestimava aspectos meramente comportamentais, além de promover uma "imagem positiva" de aspectos negativos que atingem as classes populares.
O mau gosto como suposta causa libertária, o mito da "pobreza linda", o falso feminismo das mulheres-objetos, a resignação com a miséria e o subemprego...
Na mídia de esquerda, se viam dois Brasis.
Um, na maioria das editorias, o Brasil verdadeiro, do povo batalhador, digno, ativo, corajoso e de cabeça erguida.
Outro, na editoria cultural, o Brasil espetacularizado, de pobres resignados, ingênuos, piegas, pitorescos e um tanto submissos e com mania de vitimismo.
Intelectuais contratados ou cortejados pela mídia de esquerda, mas que colaboram com interesses dos grupos Globo, Folha e Abril, botaram muitas ideias levianas nos movimentos esquerdistas.
Isso foi feito de tal forma que se defendia o "popular demais", o brega-popularesco, com o intuito de desviar o povo pobre das próprias lutas populares de esquerda.
Pior: criava-se também uma dissimulação para evitar vazar essa manipulação, com o falso engajamento atribuído ao "funk", que é o Cabo Anselmo da temporada.
O "funk", ritmo inspirado no miami bass, da Flórida anticastrista, tentou se vender como um falso paradigma de esquerdismo cultural, mas sob as claras bênçãos das Organizações Globo.
Cheio de contradições, o "funk" promovia, na verdade, a resignação do povo pobre com suas condições de inferioridade social, só pedindo para as classes média e alta também aceitarem isso.
Promovia o ufanismo das favelas, algo que parecia, no discurso, a valorização do povo pobre, mas na verdade era um apelo para os pobres não saírem de suas condições simbólicas de pobreza, por mais que ganhassem mais dinheiro e fossem aceitos ou tolerados pelas elites.
Esse engodo discursivo, no qual fazia o "funk" se dividir, por exemplo, entre a libertinagem pornográfica da "liberdade do corpo" e o aparente repúdio ao estupro e ao assédio sexual, confundiu as classes populares e iludiu os movimentos sociais.
Resultado: muita espetacularização, pouco ativismo. Muito consumismo, pouca cidadania.
E com isso o povo pobre foi induzido, mesmo pelas esquerdas, a achar que o consumismo do "popular demais" era ativismo. Ir que nem gado para ver o ídolo midiático do momento era tido como "mobilização social".
Com isso, os verdadeiros debates públicos ficaram privados. A intelectualidade "bacana" se fazia de "solidária" aos movimentos de esquerda mas sabotavam a pauta cultural para tirar o povo da luta por seus próprios direitos.
E foi assim que, desde que a "santíssima trindade" dos intelectuais "bacanas" (Paulo César de Araújo, Pedro Alexandre Sanches e Hermano Vianna) foi defender o "popular demais" apoiado pela mídia venal, chegou-se ao empenho da presidente do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia.
Primeiro, intelectuais educados pelas correntes tucanas da USP foram para a mídia esquerdista fazer seu proselitismo e empurrar o "popular demais" como suposta "cultura verdadeiramente popular".
Segundo, se impede que esquerdistas questionassem o "popular demais" que era difundido pela mídia "mais popular", porém ao mesmo tempo bastante oligárquica.
Terceiro, com o "popular demais" o povo se ocupa no entretenimento popularesco, no consumismo de fenômenos pitorescos, medíocres, aberrantes, piegas etc como se fosse um falso ativismo social e político, superestimando aspectos meramente comportamentais.
Quarto, com isso, o povo pobre deixa de lutar pelos seus problemas. Falácias como a "liberdade do corpo" e a falsa ideia da provocatividade do mau gosto como "causa libertária", ao serem tidas como "ativismo de esquerda", desencorajava o verdadeiro ativismo de esquerda.
Quinto, com a "ocupação" do povo pobre no entretenimento "popular demais", os ativistas de esquerda se isolam e seus debates se tornam mais privativos.
Daí, diante desse cenário, se fortalecem os comentaristas midiáticos mais reacionários que, sem ter o que dizer, passaram a "defender o povo" ao questionarem o "popular demais".
Era o contraponto que a intelectualidade "bacana" infiltrada nas esquerdas queria produzir. Pedro Alexandre Sanches praticamente "inventou" Rodrigo Constantino.
Os comentaristas reacionários impulsionaram o surgimento de grupos reacionários como o MBL (o "Movimento Me Livre do Brasil"), que produziram o clamor para o golpe político de 2016.
Enquanto as esquerdas defendiam o "popular demais", o povo assistia passivo a ascensão das forças golpistas e da "ditadura de toga" trazida pela Operação Lava Jato.
E tudo se deu no julgamento que reafirmou a condenação à prisão do ex-presidente Lula.
A decisão de Carmen Lúcia de desempatar a votação, estando do lado dos que rejeitaram o habeas corpus, consagrou esse longo caminho.
De repente, quem não era cachorro, não, foi o Pato da FIESP. E as esquerdas tentando esconder o direitismo de Waldick Soriano, enquanto não esperavam o direitismo de Zezé di Camargo & Luciano.
O povo pobre acabou indo embora, ocupado com o consumo do "popular demais" que as esquerdas tomaram como "seu" mas era uma falsa cultura popular promovida pela mídia oligárquica.
O Brasil acabou "descendo até o chão", e poderá eleger um plutocrata para o Palácio do Planalto.
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