Pular para o conteúdo principal

O CONTRASTE DO BRASIL-INSTAGRAM E DO BRASIL DISTÓPICO

CASA DESTRUÍDA POR UM DESLIZAMENTO, APÓS UMA TEMPESTADE EM RECIFE.

Existem, hoje, dois Brasis. Um é o Brasil da classe média feliz que, provinciana e culturalmente precarizada, deseja alcançar o Primeiro Mundo através de uma combinação de narcisismo, estabilidade econômica e todo um aparato de urbanização, limpeza e modernidades tecnológicas. É o Brasil que comemora 50 anos de Ivete Sangalo, vai para a Virada Cultural ver atrações como Péricles, Barões da Pisadinha e outros ídolos popularescos, e vive no mundo da fantasia do Instagram.

Mas há um outro Brasil dramático, trágico. Dos indígenas e camponeses mortos à revelia da chamada opinião pública, no interior. Dos favelados exterminados em lugares como Jacarezinho e Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro. Dos sem-teto tratados com violência extrema por policiais, na Cracolândia, em São Paulo. E das pessoas que morrem em temporais que atingem favelas e destroem casas.

Neste último caso, em Pernambuco, 85 pessoas morreram, até a edição deste texto. E isso completou o coquetel trágico de populares falecidos que vai desde sem-teto morrendo de frio em São Paulo até pessoas inocentes morrendo atingidas por balas perdidas no Rio de Janeiro.

A periferia só é linda na imaginação fértil do badalado intelectual pró-brega, aquele que não podemos criticar porque ele é o "coitadinho que luta contra o preconceito", o "provocador incompreendido" que acha que a "verdadeira cultura popular" ocorre dentro dos cativeiros do entretenimento midiático popularesco, sob a vigilância dos latifundiários e dos barões da grande mídia. 

"Romper o preconceito" é um eufemismo para aceitar o povo pobre como refém de suas mazelas. E como esse "combate ao preconceito" envolve uma esfera de sonho e fantasia, com o povo pobre idealizado como uma multidão "feliz" que vive o Carnaval 365 ou 366 dias por ano, dá para perceber como meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... não consegue fazer sucesso.

Ultimamente, a defesa da música popularesca tornou-se mais seletiva, uma vez que algumas tendências acabaram caindo no colo de Jair Bolsonaro. Gusttavo Lima, por exemplo, ícone do "sertanejo universitário" (que de "universitário" só tem o nome), recebeu verbas do Governo Federal no valor de R$ 1 milhão, recursos que seriam destinados para Educação e Saúde públicas.

Mas a classe média infantilizada precisa mudar levemente os paradigmas e apenas troca o seis bolsonarista pela meia-dúzia da positividade tóxica que hoje quer eleger um Lula domesticado e tornado "bichinho de pelúcia" do tucanato histórico.

Desta forma, troca-se o "sertanejo" pelo "pagode romântico", mais "urbano" e "alegre". Troca-se a religiosidade raivosa dos neopentecostais pelo misticismo piegas e pseudointelectual do Espiritismo brasileiro, fazendo assim um leve avanço no tempo: se os neopentecostais focalizam o mundo do século VII a.C, os "espíritas" acertam a ampulheta para o século XII da nossa era. Substitui-se um Império Romano que exterminava gente como os crstãos primitivos por um Império Bizantino que se apropriou do carisma de Jesus Cristo reportado pelos evangelistas.

Isso tem muito a ver com um contexto em que o tucanato acena para acolher um petismo domesticado, a comprar o fim do antipetismo pela ocultação de antigos crimes tucanos, como a privataria. Perfeito para um clima de "espiritualidade" que aceita um Jesus medievalizado abraçado aos antigos algozes, enquanto se passa pano nas hipocrisias dos antigos fariseus falsamente sábios, também falsos cristos e falsos profetas, antepassados dos "médiuns" de hoje e sua "caridade lata-velha".

Essas coisas preenchem todo o imaginário toxicamente positivista de uma classe média ignorante - deixemos fora a "boa classe média" que poderia ser apenas chamada de classe mediana - , que vive no Brasil-Instagram e se acha "dona da verdade" e "dona do mundo", e que não vive a realidade crua que atinge sem-tetos e favelados na vida real.

Imagine você viver na favela e ficar assustado quando ouve uma sirene da polícia, sofrendo um trauma de tirar o sono. Ou imagine você dormir num barraco de favela e a casa ser destruída de repente e você ou seus familiares morrerem. Você viver numa reserva indígena ser atacado por jagunços ou garimpeiros. Ou viver na rua e deitar na calçada suja e doentia, tremendo de frio e de medo.

Em Recife, cenas horríveis de casas caindo na beira dos rios. Pessoas perdendo vários familiares por conta da tragédia dos deslizamentos e destruições por conta dos temporais. Pouco antes, em São Paulo, a polícia circulando pela Cracolândia com carro blindado, enquanto policiais espancavam uma mulher que vivia nas ruas, nesta véspera de inverno em que o frio já marcou presença antecipada aqui na capital paulista.

A classe média não sabe disso. "Sem preconceitos", mas muito preconceituosa, ela vai rebolar ao som de Péricles, dos Barões da Pisadinha, de Léo Santana, depois de lavarem a alma com o aniversário cheio de pompa dos 50 anos da Ivete Sangalo. Vive de trocar piadinhas e gargalhadas com os amigos. Vive com uma positividade tão obsessiva que a menor menção de alguma tristeza lhe causa irritação e pânico.

Recife, para esse pessoal, é festa com muito rebolado, muita cerveja, batuques (não da tradição cultural pernambucana nem do mangue beat, mas de preferência os "importados" do "funk", forró-brega e axé-music), frutos do mar, praia, futebol e muitos selfies em locais turísticos, como se tais turistas, em vez de vislumbrarem pontos turísticos, pedissem para que os pontos turísticos lhes vissem, estrelas das redes sociais que (acham que) são.

No meio do ano, o Nordeste é muita chuva. Salvador, onde vivi, tem trovoadas entre outubro e dezembro ou em fevereiro e março. Não é tão frio, mas as tragédias conhecidas em todo o Brasil, como alagamentos, deslizamentos de terras, pedestres sob risco de serem eletrocutados na sua andança em ruas cheias d'água, pessoas perdendo casas e até perdendo a vida com elas, tudo isso também ocorre nas cidades nordestinas.

Falta de planejamento de moradia, desigualdades sociais imensas, tudo isso que a classe média medíocre acha de fáceis soluções, a ponto de, com sua filantropia fajuta, confundir "transformar vidas" com "aliviar o sofrimento", duas expressões totalmente diferentes. Mas a própria classe média, ocupada em sua positividade tóxica - que foi sempre o motor emocional das elites do atraso - , nunca se preocupou de verdade com os problemas dos oprimidos e necessitados.

E aí vemos o grande contraste que, num lado, mostra o Brasil-Instagram da classe média religiosa, festiva, às vezes sagrada demais, em outras extremamente profana, mas sempre fútil, ignorante, pedante e com um grande complexo de superioridade. E outro lado mostra o povo sem voz e sem vez, que vive sua tragédia diária sem que haja o socorro efetivo das elites que apenas ajudam pouco, visando mais as vantagens sociais dos elitistas do que ao atendimento dos mais necessitados.

Temos que pensar num Brasil diferente dessa positividade tóxica cuja alegria mais agride do que agrega.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FUNQUEIROS, POBRES?

As notícias recentes mostram o quanto vale o ditado "Quem nunca comeu doce, quando come se lambuza". Dois funqueiros, MC Daniel e MC Ryan, viraram notícias por conta de seus patrimônios de riqueza, contrariando a imagem de pobreza associada ao gênero brega-popularesco, tão alardeada pela intelectualidade "bacana". Mc Daniel recuperou um carrão Land Rover avaliado em nada menos que R$ 700 mil. É o terceiro assalto que o intérprete, conhecido como o Falcão do Funk, sofreu. O último assalto foi na Zona Sul do Rio de Janeiro. Antes de recuperar o carro, a recompensa prometida pelo funqueiro foi oferecida. Já em Mogi das Cruzes, interior de São Paulo, outro funqueiro, MC Ryan, teve seu condomínio de luxo observado por uma quadrilha de ladrões que queriam assaltar o famoso. Com isso, Ryan decidiu contratar seguranças armados para escoltá-lo. Não bastasse o fato de, na prática, o DJ Marlboro e o Rômulo Costa - que armou a festa "quinta coluna" que anestesiou e en

FIQUEMOS ESPERTOS!!!!

PESSOAS RICAS FANTASIADAS DE "GENTE SIMPLES". O momento atual é de muita cautela. Passamos pelo confuso cenário das "jornadas de junho", pela farsa punitivista da Operação Lava Jato, pelo golpe contra Dilma Rousseff, pelos retrocessos de Temer, pelo fascismo circense de Bolsonaro. Não vai ser agora que iremos atingir o paraíso com Lula nem iremos atingir o Primeiro Mundo em breve. Vamos combinar que o tempo atual nem é tão humanitário assim. Quem obteve o protagonismo é uma elite fantasiada de gente simples, mas é descendente das velhas elites da Casa Grande, dos velhos bandeirantes, dos velhos senhores de engenhos e das velhas oligarquias latifundiárias e empresariais. Só porque os tataranetos dos velhos exterminadores de índios e exploradores do trabalho escravo aceitam tomar pinga em birosca da Zona Norte não significa que nossas elites se despiram do seu elitismo e passaram a ser "povo" se misturando à multidão. Tudo isso é uma camuflagem para esconder

DEMOCRACIA OU LULOCRACIA?

  TUDO É FESTA - ANIMAÇÃO DE LULA ESTÁ EM DESACORDO COM A SOBRIEDADE COM QUE SE DEVE TER NA VERDADEIRA RECONSTRUÇÃO DO BRASIL. AQUI, O PRESIDENTE DURANTE EVENTO DA VOLKSWAGEN DO BRASIL. O que poucos conseguem entender é que, para reconstruir o Brasil, não há clima de festa. Mesmo quando, na Blumenau devastada pela trágica enchente de 1983, se realizou a primeira Oktoberfest, a festa era um meio de atrair recursos para a reconstrução da cidade catarinense. Imagine uma cirurgia cujo paciente é um doente em estado terminal. A equipe de cirurgiões não iria fazer clima de festa, ainda mais antes de realizar a operação. Mas o que se vê no Brasil é uma situação muito bizarra, que não dá para ser entendida na forma fácil e simplória das narrativas dominantes nas redes sociais. Tudo é festa neste lulismo espetaculoso que vemos. Durante evento ocorrido ontem, na sede da Volkswagen do Brasil, em São Bernardo do Campo, Lula, já longe do antigo líder sindical de outros tempos, mais parecia um showm

FOMOS TAPEADOS!!!!

Durante cerca de duas décadas, fomos bombardeados pelo discurso do tal "combate ao preconceito", cujo repertório intelectual já foi separado no volume Essa Elite Sem Preconceitos (Mas Muito Preconceituosa)... , para o pessoal conhecer pagando menos pelo livro. Essa retórica chorosa, que alternava entre o vitimismo e a arrogância de uma elite de intelectuais "bacanas", criou uma narrativa em que os fenômenos popularescos, em boa parte montados pela ditadura militar, eram a "verdadeira cultura popular". Vieram declarações de profunda falsidade, mas com um apelo de convencimento perigosamente eficaz: termos como "MPB com P maiúsculo", "cultura das periferias", "expressão cultural do povo pobre", "expressão da dor e dos desejos da população pobre", "a cultura popular sem corantes ou aromatizantes" vieram para convencer a opinião pública de que o caminho da cultura popular era através da bregalização, partindo d

VIRALATISMO MUSICAL BRASILEIRO

  "DIZ QUE É VERDADE, QUE TEM SAUDADE .." O viralatismo cultural brasileiro não se limita ao bolsonarismo e ao lavajatismo. As guerras culturais não se limitam às propagandas ditatoriais ou de movimentos fascistas. Pensar o viralatismo cultural, ou culturalismo vira-lata, dessa maneira é ver a realidade de maneira limitada, simplista e com antolhos. O que não foi a campanha do suposto "combate ao preconceito", da "santíssima trindade" pró-brega Paulo César de Araújo, Pedro Alexandre Sanches e Hermano Vianna senão a guerra cultural contra a emancipação real do povo pobre? Sanches, o homem da Folha de São Paulo, invadindo a imprensa de esquerda para dizer que a pobreza é "linda" e que a precarização cultural é o máximo". Viralatismo cultural não é só Bolsonaro, Moro, Trump. É"médium de peruca", é Michael Sullivan, é o É O Tchan, é achar que "Evidências" com Chitãozinho e Xororó é um clássico, é subcelebridade se pavoneando

ESQUERDAS CORTEJANDO UMA CANTORA IDENTITARISTA... MAS CAPITALISTA

CARTAZ DA BOITEMPO JUNTANDO KARL MARX E MADONNA NO MESMO BALAIO. O Brasil está tendo uma aula gratuita do que é peleguismo, com Lula fazendo duplo jogo político enganando o povo pobre e se aliando com os ricos, e do que é pequena burguesia, com uma elite de classe média abastada que aoosta num esquerdismo infantilizado, identitarista e indiferente aos verdadeiros problemas das classes trabalhadoras. As esquerdas mainstream do Brasil, as esquerdas médias, são a tradução local da pequena burguesia falada pela teoria marxista. Uma esquerda que quer soar pop e que, através dos “brinquedos culturais” que fazem do Brasil a versão vida real da novela das 21 horas da Rede Globo, quer o mundo da direita moderada convertido num pretenso patrimônio esquerdista. Isso faz as esquerdas soarem patéticas em muitos momentos. Como se observa tanto na complacência do jornalista Julinho Bittencourt, da Revista Fórum, com o fato da apresentação de Madonna em Copacabana, no Rio de Janeiro, não ter músicos e

ALEGRIA TÓXICA DO É O TCHAN É CONSTRANGEDORA

O saudoso Arnaldo Jabor, cineasta, jornalista e um dos fundadores do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC - UNE), era um dos críticos da deterioração da cultura popular nos últimos tempos. Ele acompanhava a lucidez de tanta gente, como Ruy Castro e o também saudoso Mauro Dias que falava do "massacre cultural" da música popularesca. Grandes tempos e últimos em que se destacava um pensamento crítico que, infelizmente, foi deixado para trás por uma geração de intelectuais tucanos que, usando a desculpa do "combate ao preconceito" para defender a deterioração da cultura popular.  O pretenso motivo era promover um "reconhecimento de grande valor" dos sucessos popularescos, com todo aquele papo furado de representar o "espírito de uma época" e "expressar desejos, hábitos e crenças de um povo". Para defender a música popularesca, no fundo visando interesses empresariais e políticos em jogo, vale até apelar para a fal

O PESADELO GAÚCHO QUE DESAFIA O "SONHO BRASILEIRO"

O CENTRO DE PORTO ALEGRE COM ÁGUA QUE ATINGIU CINCO METROS DE ALAGAMENTO. Não há como sonhar grande. O risco de cair da cama é total. A terrível tragédia do temporal no Rio Grande do Sul é algo que nos faz parar para pensar. Isso é normal para um país próspero? Falta alguma consciência ambiental no nosso país? Até o fechamento deste texto, 56 pessoas morreram e vários estão entre feridos, desabrigados e desaparecidos. Porto Alegre, Caxias do Sul e Gramado estão entre as inúmeras cidades atingidas por chuvas intensas, vendavais, trovoadas e transborda de rios, entre eles o Guaíba. E nós manifestamos pesar sobre essa traumatizante ocorrência e solidariedade às vítimas. A situação é muito triste, mas não deixa de ser lamentável o oportunismo das subcelebridades, aspirantes a super-ricos, de oferecer doações milionárias para as vítimas das enchentes. Uma sociedade que, em condições naturais, quer demais para si e, egoísta, não quer abrir mão do supérfluo para ajudar o próximo a ter o neces

BRASIL NO APOGEU DO EGOÍSMO HUMANO

A "SOCIEDADE DO AMOR" E SEU APETITE VORAZ DE CONSUMIR O DINHEIRO EM EXCESSO QUE TEM. Nunca o egoísmo esteve tão em moda no Brasil. Pessoas com mão-de-vaca consumindo que nem loucos mas se recusando a ajudar o próximo. Poucos ajudam os miseráveis, poucos dão dinheiro para quem precisa. Muitos, porém, dizem não ter dinheiro para ajudar o próximo, e declaram isso com falsa gentileza, mal escondendo sua irritação. Mas são essas mesmas pessoas que têm muito dinheiro para comprar cigarros e cervejas, esses dois venenos cancerígenos que a "boa" sociedade consome em dimensões bíblicas, achando que vão viver até os 100 anos com essa verdadeira dieta do mal à base de muita nicotina e muito álcool. A dita "sociedade do amor", sem medo e sem amor, que é a elite do bom atraso, a burguesia de chinelos invisível a olho nu, está consumindo feito animais vorazes o que seus instintos veem como algo prazeroso. Pessoas transformadas em bichos, dominadas apenas por seus instin

FLUMINENSE FM E O RADIALISMO ROCK QUE QUASE NÃO EXISTE MAIS

É vergonhoso ver como a cultura rock e seu mercado radiofônico se reduziram hoje em dia, num verdadeiro lixo que só serve para alimentar fortunas do empresariado do entretenimento, de promotoras de eventos, de anunciantes, da mídia associada, às custas de produtos caros que vendem para jovens desavisados em eventos musicais.  São os novos super-ricos a arrancar cada vez mais o dinheiro, o couro e até os rins de quem consome música em geral, e o rock, hoje reduzido a um teatro de marionetes e um picadeiro da Faria Lima, se tornou uma grande piada, mergulhada na mesmice do hit-parade . Ninguém mais garimpa grandes canções, conformada com os mesmos sucessos de sempre, esperando que Stranger Things e Velozes e Furiosos façam alguma canção obscura se popularizar. Nos anos 1980, houve uma rádio muito brilhante, que até hoje não deixou sucessora à altura, seja pelos critérios de programação, pelo leque amplo de músicas tocadas e pela linguagem própria de seus locutores, seja pelo alcance do s