A campanha de Lula quase deixou o clima de festa para se ajustar ao cenário distópico do Brasil real, eis que, dois dias depois da tragédia de sábado passado, quando o guarda municipal Marcelo Aloízio Arruda foi morto pelo bolsonarista Jorge José da Rocha Guaranho na festa de aniversário de 50 anos da vítima, em Foz do Iguaçu.
Quando tudo parecia cair no realismo, eis que a estrela pop Anitta, manifestando total repúdio ao atentado contra o guarda municipal, declarou seu voto a Lula e sua disposição em ajudá-lo a ser eleito, depois de tanta hesitação da cantora em relação à opção eleitoral. E aí o realismo até se manteve de certa forma, com as preocupações pela segurança do petista cada vez mais rígidas - o que é correto - , mas o clima de festa voltou mostrando uma estranha polarização.
Essa polarização está entre a "alegria" de esquerda e a "raiva" de direita. É um maniqueísmo fácil, que faz os brasileiros de esquerda se esquecerem que, nos áureos tempos dos movimentos proletários socialistas, havia raiva, mas uma raiva justa, contra os abusos do empresariado, diferente do que as esquerdas médias de hoje fazem, acreditando no bom-mocismo da burguesia nacional.
Isso mostra o quanto as esquerdas médias são infantilizadas e tratam a política como se fosse brincadeira. Tudo é festa, e dá para entender o fracasso do Movimento Fora Bolsonaro, que errou duas vezes ao reduzir o protesto ao carnaval identitário e instituir um hiato de um mês e meio entre um protesto e outro.
Daí que o preço a ser cobrado por tamanha acomodação - as esquerdas médias acham que basta a memecracia das redes sociais para "derrubar" Jair Bolsonaro - foi este: aumento nos preços de combustíveis e do leite, violência bolsonarista, vadiagem do próprio presidente, com suas motociatas e passeios de jet-ski. Sem um empenho para derrubar Bolsonaro, este saiu fortalecido.
Á primeira vista, parece bom o maniqueísmo organizado de uma direita que é "raiva e ódio" e a esquerda que é "amor e alegria". Mas, na complexidade da vida humana, isso é terrível, porque não dá para definir raiva e amor, ódio e alegria, dessa forma tão linear e prosaica.
Em outros tempos, o mundo conservador era pura alegria, seja o american way of life da família-padrão dos EUA, com pai, mãe e um casal de filhos viajando num carro para fazer piquenique no bosque, seja a própria estética do Disney World e seu mundo da fantasia.
Em compensação, as esquerdas sempre atuaram através dos protestos raivosos de trabalhadores, camponeses e desempregados e sem-teto em geral, não raro tendo que enfrentar a repressão policial e militar e até perder a vida com esse confronto. Mesmo quando se usava o senso de humor, como na Nova Esquerda dos EUA, de Jerry Rubin e Abbie Hoffmann, havia também um forte tom de protesto e de indignação.
Infelizmente, as esquerdas não se indignam mais, fora as pautas dominantes contra as quais manifestam seu repúdio. Mas mesmo essa indignação não é feita sem um clima de festa, de carnaval identitário, como se os foliões tivessem tomado o lugar que era dos antigos militantes socialistas.
É claro que não se deve haver sisudez, mas o que se vê nas esquerdas é um infantilismo ao mesmo tempo ingênuo e birrento, além de fantasioso, piegas, sonhador, festivo. E isso faz comprometer muito do tom de protesto, domesticando as esquerdas que acabam exagerando na sua positividade obsessiva, abandonando até mesmo o senso crítico.
De repente, contestar, questionar, verificar um erro, tudo isso foi erroneamente associado à direita, ou, o que é pior, à extrema-direita, já que a direita moderada agora está com Lula. E isso piora muito mais as coisas, porque tais atribuições acabam empoderando os extremo-direitistas, que se apropriam de clichês de rebeldia e contestação que antes eram próprios das forças progressistas.
Isso é ruim. Enquanto isso, as esquerdas, sendo mais emoção que razão, absorvendo tudo que lhes parece "positivo" - como os "brinquedos culturais" da direita moderada, ou seja, uma simbologia conservadora supostamente associada a valores positivos - , o que as coloca numa postura ridícula, ao creditar como "progressistas" e até "comunistas" valores e personalidades que são retrógrados e reacionários.
A fé religiosa, não raro associada a valores medievais - quando o Catolicismo pregava intolerância contra outras manifestações, não digo necessariamente religiosas, mas contrárias aos dogmas rígidos da "Santa Igreja" - e reciclada por "médiuns espíritas" (que no fundo são muito mais conservadores do que as esquerdas imaginam), é um exemplo de como as esquerdas caem no ridículo, descartando a racionalidade e o senso crítico para "aceitar" e "acreditar".
O caso do povo pobre, então, também é ilustrativo. Ver que setores da direita moderada - não digo a burguesia espalhafatosa que hoje está com Lula - questionam a imagem caricatural do povo pobre através da mitificação das "periferias", enquanto as esquerdas exaltam o povo pobre quando este fez papel de ridículo, como crianças pobres fazendo danças estúpidas bem de acordo com o retardamento mental do universo Tik Tok, é de deixar pasmo.
Sim, ver um debate com Lord Vinheteiro e Régis Tadeu, que não são de esquerda, mas de direita moderada, dizendo que pobre não quer viver na favela e merece vida melhor, enquanto as esquerdas ficam nesse ufanismo das favelas, é algo muito, muito humilhante.
São essas distorções que fazem com que o maniqueísmo fácil de uma extrema-direita "negativista" e de uma esquerda "positivista" se torne ineficaz e até perigoso. Pois atribuir à extrema-direita o senso crítico e a capacidade de indignar é que está permitindo que os bolsonaristas se tornem mais violentos, enquanto as esquerdas se tornam abobalhadas ao atribuir para si um combo que mistura fé, festa, hedonismo, alegria exagerada e, principalmente, positividade tóxica.
Daí ser constrangedor ver as esquerdas agindo como se estivessem num Carnaval, diante do papel simetricamente patético da extrema-direita que posa com rifles nas redes sociais. Esse maniqueísmo nunca resolveu o problema, e essa verdadeira polarização entre "esquerda-alegria" e "direita-raiva" só vai gerar crises que, do lado bolsonarista, se tornam bastante violentas, embora as esquerdas também atuem com arrogância e agressividade simbólica.
Seria melhor repensarmos bastante o Brasil, em vez de acharmos "positivo" não ter senso crítico e aceitar tudo numa boa. Isso já fez decair nossa cultura e nosso cenário socioeconômico. Em vez das esquerdas quererem para si a posse da camisa da CBF, que tal ela retomar, para si, a capacidade de ter senso crítico? Dessa forma, as esquerdas tirariam da extrema-direita a capacidade de se achar sempre com a razão.
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