Hermano Vianna, Paulo César de Araújo, Pedro Alexandre Sanches, Ronaldo Lemos, Milton Moura, Roberto Albergaria, Mônica Neves Leme, Eugênio Arantes Raggi e Bia Abramo. Estes são alguns dos personagens do livro Esses Intelectuais Pertinentes..., que descreve a campanha do "combate ao preconceito", que tomou conta da mídia e de setores da opinião pública entre os anos 2000 e a primeira metade da década de 2010.
Essa campanha visava usar a desculpa do "fim do preconceito" para não somente reciclar os sucessos dos fenômenos popularescos, mas fazer eles alcançá-los públicos com maior poder aquisitivo ou, se isso não for necessariamente o caso, as demandas com melhor grau educacional.
Com um pouco de coitadismo aqui, partindo dos próprios intelectuais, eles mesmos autoproclamados "injustiçados", e uma certa carteirada - os sociólogos e antropólogos que "pesquisam tudo", o jornalista cultural que "entrevistou tudo quanto é artista", a cineasta documentarista que "traz uma visão objetiva do tema abordado" - , eles convenceram as elites pensantes a aceitarem a avalanche de ídolos popularescos que fez o Brasil virar, atualmente, um beco sem saída da mediocrização cultural.
O discurso do "combate ao preconceito" investiu na falácia de que, só porque os ídolos popularescos atraíam público, vendiam muito e aumentavam audiências, tinham que ter seu "grande valor" reconhecido. Havia o apelo, dado com certa arrogância por esses ideólogos, de que "não era obrigado a gostar, mas a aceitar", enquanto era dada uma choradeira discursiva para convencer as pessoas a gostar dos ídolos popularescos.
Ver que esses intelectuais estiveram a serviço da gourmetização da degradação cultural, que claramente abordava uma imagem preconceituosa do povo pobre, apesar da tão alardeada "luta contra o preconceito", é constrangedor. Eu mesmo escrevi o texto com muita paciência, e eu inclusive publiquei inteiramente os ataques contra mim que o professor mineiro Eugênio Raggi fez no fórum Samba & Choro.
O povo pobre, apesar de exaltado no discurso por essa intelectualidade "bacana" - assim definida porque ela tenta parecer simpática e positiva num contexto de antiintelectualismo reinante no nosso país - , é trabalhado de forma pejorativa por esse discurso "generoso", lembrando mais uma caricatura do povo pobre pior do que as chanchadas dos anos 1950, pois se tratam de narrativas que abordam o pobre como se fosse um núcleo cômico de novelas e humorísticos de televisão.
A única diferença é que, na bregalização cultural, o povo é ao mesmo tempo tratado como palhaço, nesse circo carnavalesco identitário, mas também de forma que não se recomendasse rir nem achar ridículo. Ou seja, tinha que levar a sério essa imagem caricatural do povo pobre, atribuindo até qualidades superiores nessa espetacularização da pobreza.
O livro Esses Intelectuais Pertinentes... é indigesto porque nossa classe média "ilustrada", a pequena burguesia que se acha "sabedora do mundo, não quer quebrar sua atmosfera de sonho e fantasia, e seria duplamente doloroso ver intelectuais tão queridinhos serem postos em xeque e a imagem adocicada do povo pobre, que faz a "gente bem" dormir tranquila, ser desfeita por uma crítica "apocalíptica".
Num contexto em que o senso crítico é marginalizado, enquanto a regra é passar pano na mediocridade e na idiotização culturais, vimos os fenômenos popularescos crescerem depois de se desgastarem, forçando uma degradação cultural que fez nosso legado cultural ser esquecido, enquanto a chamada "cultura de massa", colonizada e viralatista, atingiu até mesmo os salões chiques das festinhas da juventude burguesa.
E quem imaginava que isso traria uma valorização "mais justa e digna" das classes populares, errou feio. O que estava por trás desse "combate ao preconceito", além de interesses comerciais estratégicos, era a desmobilização das classes populares, sabotando pela cultura o projeto progressista de Lula, que em 2003 já era muitíssimo moderado, mas ainda mantinha a essência das pautas progressistas, coisa que praticamente irá desaparecer no caso de Lula ser eleito.
Essa campanha dos intelectuais "bacanas" era um meio de evitar os debates culturais sérios que havia no CPC da UNE, entre 1961 e 1964, e a militância musical da MPB nos festivais de 1965-1967. Menos Edu Lobo e mais Luan Santana. E aí o discurso intelectual investia em ideias duvidosas como creditar como "ativismo popular" o simples fato de multidões se dirigirem submissas a um galpão para ver o ídolo popularesco divulgado pela grande mídia.
Com isso, as lutas populares foram sutilmente deixadas de lado, enquanto o carnaval identitário da bregalização promovia o mito do "orgulho de ser pobre", da "pobreza feliz", da "periferia legal", algo que o sociólogo Jessé Souza aponta como um discurso para forçar o povo pobre a se resignar com sua inferioridade social.
Com isso, os debates esquerdistas, que deveriam ser públicos e com a participação ampla das camadas populares, ficaram privativos entre dirigentes e especialistas. As mobilizações populares se esvaziaram enquanto que, no lado da direita, estranhos protestos das elites vestindo cores da Seleção Brasileira de Futebol pedindo a queda de Dilma Rousseff e a volta dos neoliberais ao poder.
O povo pobre estava "ocupado" dançando o "funk", o "sertanejo", o tecnobrega... Ou o "lepo-lepo", o "rebolation", o "beijinho no ombro". Não havia como zelar por Dilma Rousseff e até o "baile funk" de Copacabana de 17 de abril de 2016 foi mais uma armação do "quinta-coluna" DJ Rômulo Costa para anestesiar os protestos contra o golpe a ser dado na noite daquele dia. Sogro da golpista Antônia Fontenelle na época, Rômulo em 2017 foi se esbaldar ao lado daqueles que derrubaram Dilma.
Sob a desculpa de que o entretenimento popularesco, pela suposta provocatividade do grotesco, era um "ativismo sociocultural e político", os intelectuais pró-brega deixaram o povo à margem dos próprios movimentos sociais, o que foi crucial para abrir caminho para as truculências políticas de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
E esses intelectuais "bacanas", citados no começo do texto, quase todos diziam apoiar Lula - em troca de verbas estatais e privadas, estas por meio de incentivos fiscais aos patrocinadores de eventos e entidades culturais - e se autoproclamavam "esquerdistas", mas criaram condições que, mesmo de forma indireta, abriram caminho para Jair Bolsonaro.
Daí que o preço do "combate ao preconceito" foi caro, pois não só degradou a cultura como também acabou com as possibilidades de sustentação financeira das atividades culturais. Até a intelligentzia pagou caro por tanta choradeira "contra o preconceito".
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