Contradição não é sinônimo de equilíbrio. Lula está fazendo um duplo papel, o de moderado diante dos empresários e o de pretenso audacioso diante das classes populares, neste caso fazendo uma caricatura do antigo sindicalista que desapareceu para sempre.
Ontem foi um dia em que houve chacina no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, cometida por policiais, e a perseguição de um segurança racista a jovens negros que, como consumidores, estavam no seu direito de conhecer o Shopping Pátio Higienópolis, aqui em São Paulo. Por ironia, o Complexo do Alemão também tem sua Higienópolis (entre Inhaúma e Bonsucesso), que, diferente da paulistana, é muito pobre. Já passei pelas duas Higienópolis, manchadas de racismo num mesmo dia.
A situação está dura, o Brasil distópico, o Rio de Janeiro pragmático com o governador Cláudio Castro mandando eliminar pobres sob a desculpa de combater o crime, com policiais atirando sem haver um verdadeiro confronto e sempre matando algum inocente, e os lulistas perdidos numa esfera de sonho e de promessas sensacionais que ignoram contextos e condições.
Vamos ao discurso de Lula, que fez seu compromisso de campanha em Recife, ontem. No evento, o petista oficializou sua candidatura, assim como a de Alckmin como vice. É o segundo a oficializar a candidatura, após Ciro Gomes.
Como o evento de Lula na capital pernambucana incluiu encontros com as classes populares e com representantes da cultura pernambucana - alguns músicos de mangue beat estavam entre eles - , Lula fez o papel do prometedor de ousadias, dentro do seu estilo de argumentação muito conhecid, do qual se destacam algumas frases:
"Eu poderia não voltar, mas qual o direito que eu tenho de ficar em casa, com a Janja, se tem milhões de pessoas que voltaram a não ter o que comer?" (Janja é esposa do petista)
"O povo pobre nunca será problema, será solução quando a gente colocar o povo pobre no orçamento e o rico no Imposto de Renda. Conseguimos ver o Nordeste ter universidades, escolas técnicas, mais doutores e mestres, mais cientistas. Era possível criar uma política de distribuição de renda. A gente via médico negro, gerente de banco negro, professor universitário negro. Sou o presidente que mais fez universidades na história desse País".
"Às vezes, o companheiro não tem previdência. Que microempreendedorismo é esse? Criamos 22 milhões de empregos com carteira profissional assinada. As pessoas tinham direito a férias, eram tratadas de forma civilizada. Retrocedemos. Carteira Verde e Amarela… Quais condições de trabalho, de emprego?".
"Vocês recebiam aumento do salário mínimo acima da inflação. Hoje, apenas 7% (no País) recebem aumento acima da inflação. Esse genocida não faz absolutamente nada (para o agronegócio). As máquinas grandes que aparecem na televisão colhendo algodão, eram financiadas a 2% de juro, com três anos de carência. Hoje pagam 18% de juros. O que o pobre precisa é ter oportunidade para competir no emprego, nas universidades. Temos que colocar mais gente na faculdade".
Certo, mas como Lula vai colocar o rico no Imposto de Renda? Vai desagradar os novos amigos que lhe ajudarão a se eleger através da tal "frente ampla"? Geraldo Alckmin vai deixar ou o ex-tucano vai fazer cara de paisagem e fingir que concorda com tudo que Lula está propondo?
Alguma medida de recuperação do emprego, da escolaridade e da cidadania de fato vão acontecer, mas dentro dos limites que não incomodam os neoliberais. Lula estabeleceu um compromisso com os neoliberais. Ele não vai se aliar com as forças divergentes à sua causa progressista e, depois, vai de graça cometer suas ousadias políticas, como fortalecer o Estado, cobrar impostos dos mais ricos. A privatização não será revertida. A Faria Lima não deixaria.
É impossível que Lula mantenha suas pautas progressistas integralmente, quando sua ênfase é se aliar com quem pensa diferente dele. Negociação tem limites e Lula tende a ceder e conter seus impulsos. Lula não é Brizola. Paciência.
Analisando o que Lula vai fazer, num cálculo lógico entre suas promessas audaciosas e as alianças com forças divergentes, eu chego a uma conclusão matemática de que o petista fará eufemismos para dar a impressão de que seu governo "mantém" as promessas de ousadia programática. Vejamos:
1) ESTADO FORTE - Eufemismo para a realização de projetos como Fome Zero, Mais Médicos, Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e Cotas Universitárias. Lula mencionou as cotas universitárias de maneira subentendida, quando falou em "médicos, gerentes de banco e professores universitários negros". São os projetos de grife, a única hipótese de Lula, no contexto de suas alianças atuais, de utilizar o aparelho estatal para conduzir o atendimento dos direitos sociais dos brasileiros;
2) DIREITOS TRABALHISTAS - A recuperação dos direitos trabalhistas não será integral, mas dentro dos limites tolerados pelos neoliberais. Valorizar trabalho por carteira assinada ou, no caso dos servidores públicos, garantir leis como a 8112 / 1990, o Estatuto do Servidor Público, serão permitidos. Mas é previsto que as lutas proletárias continuem enfraquecidas e Lula avisou que quem vai intermediar as negociações entre patrões e empregados é Geraldo Alckmin, que representa o empresariado. Já dá para perceber qual será o peso maior nos acordos trabalhistas;
3) IMPOSTOS PARA OS RICOS - A única forma de "praticar" essa tese será restringir a cobrança de impostos ao empresariado bolsonarista, como Luciano Hang, da Havan, e Júnior Durski, da Madero e Jerônimo. Ou então presentear o empresariado "sério" (que "dialoga" com o petista) com incentivos fiscais para empresas que patrocinarem atividades culturais ou investirem em filantropia.
Não sejamos ingênuos em acreditar que Lula vai se aliar a empresários e ao setor financeiro para, depois, afirmar que vai cobrar impostos dos mais ricos. Raciocinemos: Lula vai pedir um favor para as elites para ajudarem a eleger o petista, e depois de eleito o petista irá cobrar dinheiro daqueles que o ajudaram a conquistar a Presidência da República?
Isso é impossível. O que se verá é Lula realizando eufemismos, manobras nas quais ele fará o povo brasileiro ter a falsa impressão de que o petista manteve integralmente todas as pautas progressistas, apesar da influência de Geraldo Alckmin e das forças conservadoras a ajudarem na eleição do petista.
Lula vai manter os projetos de grife (que têm a marca do PT) como forma de dizer que o Estado está fortalecido. Mas ele não vai reverter privatizações ocorridas antes de sua posse. O que se vai fazer é que, mesmo com Alckmin, o que não foi privatizado no governo de Jair Bolsonaro permanecerá estatal, pelo menos formalmente. A julgar pelo que ocorreu com Dilma Rousseff, é esperado o processo de concessões de gestão de estatais para a iniciativa privada, mesmo como sócia minoritária.
Temos que ser racionais e parar de pensar no mundo da fantasia. Na sua campanha, Lula explora dois personagens, o moderado que fala com os empresários e o audacioso que fala com o povo. Esse comportamento, com base no que acompanhei no movimento sindical que observei quando vivi em Salvador, é o que o jargão do proletariado define como um comportamento de pelego. Sim, Lula virou um grande pelego, e isso não é bom.
O que temos que reconhecer é que Lula fará manobras para tentar convencer os brasileiros de que ele não cedeu. Mas Lula cederá, sim, e como Geraldo Alckmin terá voz ativa e poder de decisão, temos que desistir da ideia de que as pautas progressistas de Lula serão mantidas ou ampliadas.
A tendência é que Lula sacrifique uma considerável parte de seu projeto político, agindo somente nos projetos sociais patenteados pelo PT. A logística da Economia, Administração, Tecnologia e outros pontos técnicos seguirá a orientação neoliberal ditada por Alckmin. Portanto, não dá para o Brasil ser feliz de novo e conquistar o Primeiro Mundo. Diante do contexto distópico e da ameaça bolsonarista, a única coisa que se deve desejar é apenas muita calma nesta hora. E muito cuidado.
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