As esquerdas já começam a reclamar dos vícios da intelectualidade dominante. O sociólogo Jessé de Souza, presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas (IPEA), em seu livro A Tolice da Inteligência Brasileira, reprova a inclinação das elites pensantes para o mercado, em detrimento da consciência da desigualdade social reinante.
Já Frei Betto, um dos fundadores brasileiros da Teologia da Libertação, alerta pelo fato de que, no Brasil, não se trabalhou para a conscientização política e a inclusão das classes populares no debate público, que se tornou privativo de sindicalistas e ativistas progressistas de diversos tipos.
Durante anos tivemos o domínio de uma geração de intelectuais "provocativos" que se diziam "sem preconceitos", mas tinham sérios preconceitos sociais, muitas vezes cruéis. Eles vinham com muito cinismo dizer que a favela é "linda", a prostituição é "bacana", as baixarias são "divertidas" e a pobreza é "maravilhosa", e não mediam escrúpulos para tentar convencer a opinião pública.
Era uma geração de intelectuais que queria a bregalização do país e se formou ideologicamente durante os períodos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Pessoas que aprenderam a entender a "cultura popular" sob os olhos preconceituosos do mercado, mas que, por um acidente de percurso, se ascenderam no surgimento da Era Lula.
Aí eles tinham que se passar por "esquerdistas". Paulo César Araújo, Pedro Alexandre Sanches, Milton Moura, Eugênio Raggi, Denise Garcia, a patota toda. Seu jeito "Instituto Millenium" de pensar a cultura tinha que adotar um verniz "progressista" e, como um IPES-IBAD pós-tropicalista, eles tinham que adotar até um suporte "científico", com reportagens "sérias", monografias e documentários.
Todo mundo veio dos porões ideológicos da grande mídia, do PSDB, dos colegiados tecnocráticos do neoliberalismo, mas decidiu vender a falsa imagem de "esquerdista" para impedir o avanço dos debates públicos.
E aí, essa inteligentzia tão empenhada em vender o "mau gosto" como se fosse uma "causa libertária" foi beneficiada pela alta visibilidade e, em pouco mais de uma década, eles tentaram defender os chamados "sucessos do povão" como se fosse "a verdadeira cultura popular". Criaram toda uma série de discursos persuasivos para fazer prevalecer suas visões equivocadas e delirantes.
E isso foi feito sem que houvesse um opositor com a mesma visibilidade. que contestasse o que a intelectualidade dita "mais legal do país", que prometia fazer dos fenômenos midiáticos popularescos o "folclore respeitável de amanhã", pregava em diversos espaços da mídia e da opinião pública.
Pior: abençoados pela grande mídia, eles faziam o serviço free lancer para os barões da grande mídia, sem admitir esse vínculo nem exercê-lo de maneira formal. Pelo contrário, um Pedro Alexandre Sanches transmitia seus "nada preconceituosos" preconceitos trazidos da Folha de São Paulo, para seus "passeios" pelas redações da mídia esquerdista.
De vez em quando eles faziam falsos ataques aos ícones reacionários da moda, como a revista Veja, Aécio Neves, o deputado Eduardo Cunha, a jornalista Eliane Cantanhede, o roqueiro Lobão e o humorista Marcelo Tas, em comentários forçados e palavras prontas, reproduzindo como papagaios o que os intelectuais progressistas autênticos lançavam em seus textos.
É até curioso que Chico Buarque, tão hostilizado por Sanches, tenha tido um bate-boca com direitistas quando o Farofafá entrava em férias. o que poupou os farofafeiros de encarar o impasse de estarem do lado de uma dupla de "coxinhas" da alta sociedade, traindo seu "esquerdismo de fachada".
Pois o que se observa é que muitos preconceitos sociais foram expressos por essa intelectualidade "sem preconceitos", que revelam um gritante elitismo e um julgamento de valor que impunha a miséria, a pobreza e a ignorância que o povo pobre não queria viver mas que a intelectualidade "bacana" achava "bonito" e "admirável".
Alguns mitos podem agora serem questionados, com a distância do tempo e sem o choque que esquerdistas autênticos tiveram ao verem seus "amigos" da intelectualidade "cultural" lhes apunhalando pelas costas. Vamos lá:
1) "RUPTURA DE PRECONCEITO" - Esta ideia já carrega uma carga enorme de preconceito, porque a intelectualidade preferia que aceitássemos a bregalização cultural de forma pré-concebida (sem saber direito o que se trata) do que a rejeitarmos de maneira justificada e consciente.
2) "EXPRESSÃO DAS PERIFERIAS" - Em primeiro lugar, a ideia de "periferia" é exportada das teses neoliberais de Fernando Henrique Cardoso sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento. Em segundo, porque não se pode creditar como expressão natural das classes populares um modelo de entretenimento "popular" trazido pelo mercado e pelo poder midiático.
3) "NÃO EXISTE CONFLITOS DE CLASSES NA CULTURA 'POPULAR DEMAIS'" - O brega-popularesco, como efeito da politicagem nas concessões de rádio e TV do governo Sarney, que desenhou a mídia neocoronelista dos anos 90, representa os interesses dos grandes proprietários de terras e de meios de produção sobre as classes populares. Pessoas vindas das classes populares eram contratadas, mas elas faziam o jogo de interesses do empresariado, dos rentistas, "coronéis" rurais e barões da mídia.
4) "A FAVELA É UM LUGAR MARAVILHOSO" - Os favelados merecem respeito, mas não a favela, que é um espaço injustamente concebido por causa da exclusão imobiliária das classes populares. As favelas são construções problemáticas, caóticas e improvisadas, com várias áreas de risco e sem o menor conforto. Portanto, não faz sentido criar um ufanismo das favelas e investir em jargões hipócritas como "eu sou favela" e "a favela é meu lugar".
5) "VIVA A PROSTITUIÇÃO E A LIBERDADE DO CORPO" - Enquanto lá fora prostituição é considerado um problema, a intelectualidade "bacana" brasileira fez de tudo para fixar essa atividade, geralmente provisória, na vida das mulheres pobres. Não adianta as mulheres pobres dizerem que querem ser professoras, servidoras, advogadas etc, porque a intelligentzia cinicamente vai definir como "higienismo" (sic). Defender a prostituição como "ofício permanente" é garantir o recreio dos ricos investidores solteiros. Além do mais, há a figura tirânica dos cafetões.
Quanto à "liberdade do corpo", que faz certas mulheres grotescamente siliconadas "mostrarem demais" (transformando seus corpos em mercadorias de consumo de machistas vorazes), isso é tão ridículo quanto os "revoltados" de direita na Internet. E de que adianta liberdade do corpo se não há a liberdade da alma e o erotismo acaba escravizando a vida de certas mulheres?
6) "AUTOSSUFICIÊNCIA DAS PERIFERIAS" - Como dizer que as classes populares vivem uma prosperidade econômica se esse papo de "autossuficiência" corresponde tão somente ao enriquecimento financeiro dos empresários desse entretenimento pseudo-popular? O povo continua na pindaíba, só gasta dinheiro para consumir os tais "sucessos do momento", dando grana para os "pobrezinhos" empresários da breguice cultural.
7) "EXECUTIVOS E GERENTES DE RÁDIO SÃO REPRESENTANTES DO POVO" - Os gerentes artísticos, erroneamente tidos como "divulgadores das periferias", são funcionários de rádios tidas como "muito populares", mas que são controladas por oligarquias empresariais, sejam aristocratas regionais, deputados locais ou latifundiários. Executivos de rádio, em posições acima do gerente (cargo este que coordena a programação), também estão a serviço desses donos de rádio. Portanto, eles representam o poder midiático local, não as classes populares da região.
8) "A BREGALIZAÇÃO É MARAVILHOSA PORQUE É UM DESAFIO AO BOM GOSTO" - A ideia do "mau gosto" como pretensa causa libertária da cultura popular é um discurso hipócrita, porque atribui ao povo pobre as piores qualidades. É um dos piores preconceitos existentes na intelectualidade dita "sem preconceitos".
9) "O POVO DÁ MOSTRA DE ATIVISMO INDO PARA AS CASAS NOTURNAS VER OS 'SUCESSOS DO POVÃO'" - Esse discurso dominou principalmente no "funk", mas era constante também no "pagodão" baiano e no "forró eletrônico". Pessoas indo para consumir os sucessos do momento se dirigindo que nem gado a um galpão de espetáculos. Para a intelectualidade "bacana" isso era "ativismo". "Melhor" do que lutar por qualidade de vida, por um pedaço de terra e pelo fim das desigualdades sociais, não é?
10) "MULHERES DO SUBÚRBIO SÃO FEMINISTAS PORQUE VÃO E VÊM DE CASAS NOTURNAS SEM A COMPANHIA DE HOMENS" - Isso é papo furado. Ninguém é feminista porque anda desacompanhado. Pensar assim soa simplório e equivocado. Pior é que quem lançou essa ideia tola foi o falecido antropólogo baiano Roberto Albergaria, que junto com Milton Moura eram entusiastas locais da bregalização.
E, elitista, Albergaria ainda lançou a tese da "autoesculhambação" como se o povo pobre gostasse de se ridicularizar, o que é uma visão desrespeitosa e do mais abjeto cinismo expressa por intelectuais que se diziam "amigos do povo" e "legítimos defensores da cultura popular".
Além do mais, torna-se um "bom gosto" às avessas, no sentido de estabelecer um padrão dominante e uma estética rigidamente nivelada por baixo. O brega e o "funk" mostram que esse universo musical é esteticamente mais rígido e inflexível do que a "caretona" MPB.
CONCLUSÃO: Com estas observações, a intelectualidade que defendia a bregalização cultural do país e que se julgava "mais povo que o povo" deu um tiro no pé e, com o tempo, nem a alta visibilidade pôde sustentar suas reputações duvidosas. No fim suas ideias equivocadas vão sendo analisadas e questionadas e a "ditabranda do mau gosto" passa a se revelar uma farsa.
Mas aí os intelectuais já quebraram a vidraça e fugiram e, com esse papo, empastelaram o debate cultural das esquerdas, que ficou comprometido e hoje recomeça do zero. Enquanto isso, a opinião pública se sentiu lesada ao dar ouvidos a intelectuais que preferiam ver um povo transformado em uma massa de retardados do que lutando por melhorias de vida.
Comentários
Postar um comentário