A década de 1990 foi, no Brasil, a década perdida, uma versão tardia da década de 1980 dos EUA, que virou paradigma para a década oitentista ser considerada lixo pela crítica especializada.
Foi uma década que misturava hedonismo, pragmatismo, catarse e imbecilização, e um período que forneceu as condições mentais que culminaram na vitória de Jair Bolsonaro, hoje presidente da República.
Afinal, Bolsonaro é um "filho dos anos 90", pois foi aí que ele começou sua vida política.
Os anos 90 foram tão estranhos, tão bizonhos que, no Brasil, não houve uma despedida da década, mesmo sendo também fim de século e fim de milênio.
Pelo contrário, as coisas se seguiram como se os anos 2000 fossem uma continuidade da década de 1990.
Ou seja, importantes efemérides mundiais eram ignoradas pela mídia brasileira. Não houve aviso prévio do fim, respectiva, despedida, ninguém fechou para balanço. A década de 1990 se seguiu no raiar de 2000.
E ela seguiu quase incólume no Brasil, radicalizada pela intelectalidade "bacana" que empurrou uma cultura midiática de centro-direita para a mídia de esquerda engolir como criança tomando chá de losna.
E agora a década que não terminou recebe revival.
O livro Como Eu Sobrevivi Aos Anos 90, de Danilo Nogy, e a novela Verão 90, da Rede Globo, sinalizam esse saudosismo de uma festa que nunca acabou.
Mesmo coisas como a gíria "balada" (copyright Tutinha e Luciano Huck) vieram dos anos 90, sendo uma gíria privativa de jovens riquinhos (e reacionários) das ricas elites paulistanas da época.
Os "coxinhas" surgiram dos sociopatas que existiram nos fóruns de Internet nos anos 90, e, mais tarde, na turma reaça que se escondia na comunidade Eu Odeio Acordar Cedo, no Orkut.
Eram os embriões dos hoje conhecidos bolsomínions.
Eles têm, até hoje, um repertório de referências bem anos 90.
Mesmo um seriado produzido no México nos anos 1970, Chaves (El Chavo del Ocho, surgido em 1971), e transmitido no Brasil a partir de 1985, se encaixa no contexto noventista brasileiro.
Na década de 90, também tivemos a decadência das rádios de rock, com o desaparecimento de emissoras originais e o rebaixamento do formato a um perfil Jovem Pan 2 com vitrolão roqueiro.
Eram as "Jovem Pan com guitarras". Tinhamos um monte delas, mas depois muitas sumiram e duas se projetaram, a 89 FM (SP) e a Rádio Cidade (RJ), ninhos dos "roqueiros de direita".
A programação tinha seus equivalentes ao "Torpedo", "As Sete Melhores", até o "Pânico da Pan", mas tudo isso recebia vista grossa por causa do rótulo de "roquenroool".
Seus locutores eram apenas equivalentes do Emílio Surita e Celso Portiolli vestindo jaqueta de couro. E queriam ter a reputação de um Leopoldo Rey, de um Kid Vinil. Vejam só!
Mas os anos 90 também tiveram baixarias pornográficas servidas para crianças, vide o caso do É O Tchan, que contou até com a cumplicidade do hoje bolsonarista Raul Gil para mostrar a "alegria" do grupo para o público infantil.
As "boas famílias", hoje capazes de eleger governo fascista, ficavam felizes quando suas crianças imitavam os passos dos membros do É O Tchan, numa clara alusão à erotização das crianças.
O politicamente incorreto, que para mim é apenas uma parte da relação yin-yang com o politicamente correto, invadiu até os comerciais de TV.
E isso se deu de tal forma que um comercial da Semp Toshiba, exibido em 1994 e 1995 e que mostra uma fila de cinema e um garoto saltitante, fazia apologia ao feminicídio, através do grito do peralta "A mocinha morre no final. Quem matou foi o marido".
Enquanto isso, os Mamonas Assassinas tiveram trajetória meteórica, de fim trágico por acidente aéreo (a exemplo do roqueiro Richie Valens, só que num contexto totalmente diferente), mas deixou um legado muito impactuante.
Os Mamonas Assassinas enterraram a cultura rock, reduzida a uma palhaçada de pessoas idiotizadas botando linguinha para fora e fazendo chifrinho com os dedos, enquanto só ouve hits roqueiros e entende mais de futebol do que de rock.
Mas os Mamonas Assassinas, capazes de unir Band FM, Jovem Pan 2 e 89 FM, fizeram o jovem acolher a bregalização cultural, algo impensável poucos anos antes.
O falecido grupo criou o imaginário lúdico do jovem médio que ouve brega (sobretudo "funk" e "sertanejo"), vê besteirol, faz zoeira na Internet e vota em Jair Bolsonaro.
Um jovem que não sabe o que é moderno, com seus referenciais confusos que incluem muita cafonice fedendo a mofo tóxico.
Os anos 90 no Brasil foram festejados pela mídia venal. Afinal, foi aí que ela aumentou seu poder, depois de seu quixotismo em torno das Diretas Já e do escândalo Collor-PC Farias.
A década noventista também representou a aplicação prática do coronelismo midiático montado pelas concessões apadrinhadas por José Sarney e Antônio Carlos Magalhães.
Foram as FMs coronelistas que derrubaram o rádio AM, macaqueando seu formato, e promoveram a bregalização cultural em larga escala no país.
Sílvio Santos e Raul Gil, que hoje apoiam Jair Bolsonaro, apoiaram pesado a bregalização. Raul Gil mostrava crianças dançando o Tchan e ele mesmo recebeu o grupo em mais de uma ocasião.
Enquanto isso, a violência era glamourizada pelo Aqui Agora, que pouco depois tinha seus sucessores, como Cidade Alerta e Brasil Urgente.
Na música, "pagodeiros" e "sertanejos" expressavam a cafonice travestida de "ritmos populares", e, depois de promover o ridículo foram induzidos pela grande mídia a "brincar de MPB", parasitando repertório alheio ou duetando como emepebistas, no fim dos anos 90.
A influência coronelista da bregalização recebeu vista grossa dos intelectuais "bacanas", que mentiram dizendo que o fenômeno vinha "espontaneamente" das periferias.
O Brasil teve a década de 1990 marcada pelo hedonismo mórbido, pela idiotização cultural, pela degradação de valores morais e pela politicagem promíscua da grande mídia.
Nos EUA, o que prevalecia era a ressaca "funk metal" dos anos 1980 - no Reino Unido, era o indie dance - e, depois, o niilismo do grunge e a relativa alegria do poppy punk.
No fim dos anos 90, EUA e Reino Unido também viveram o clima melancólico do rock-balada (rock mais lento e melancólico) de R. E. M., Radiohead, Pulp, Oasis, Travis e um nascente Coldplay. Mas até o trip hop de Portishead & companhia seguiam a mesma lentidão melancólica.
Lá fora, ao menos nesses dois países anglófonos, a década noventista foi um período de muita reflexão e ceticismo, depois da bandalheira do pop coreográfico e pitoresco dos anos 1980.
No Brasil, onde as coisas chegam com atraso, o pop coreográfico e pitoresco foi ainda mais grotesco e simbolizou o "longo verão" dos anos 1990 que ainda não acabou.
E ainda se sente saudades de coisas que não são passado, como É O Tchan e Zezé di Camargo & Luciano.
Mas, diante do cenário sombrio que se desenha no começo deste ano, pode ser que o longo inverno de melancolia que (des) animou britânicos e estadunidenses possa chegar finalmente ao Brasil.
Isso se Luan Santana não pegar carona em alguma onda deprê. Ele não é Tom Yorke.
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