Não se reconstrói uma casa festejando primeiro e trabalhando depois. A falta de compreensão da sociedade brasileira quanto à necessidade de debater e questionar muita coisa neste país faz com que as pessoas queiram um "novo Brasil" mantendo coisas velhas, e, o que é pior, entulhos bem mais podres do que o entulho bolsonarista, até porque, se não fossem os "brinquedos culturais" do Brasil-novela com seus funqueiros, "médiuns", boazudas e toda uma multidão culturalista oriunda do "milagre brasileiro", certamente Jair Bolsonaro nem teria sido eleito deputado federal em 2014.
A eleição de Bolsonaro como deputado federal, como um subproduto do Fla-Flu político que se seguiu à campanha "contra o preconceito" da bregalização e da idiotização cultural gourmetizadas, foi um dos pontos de partida para o golpe político de 2016 que derrubou Dilma Rousseff, uma resposta para o erro grotesco das esquerdas em assimilar referenciais direitistas que, supostamente, fazem o povo pobre sorrir.
Infelizmente, muitos brasileiros precisam aprender certas coisas, afinal como sabemos que Bolsonaro devastou o Brasil, é claro que o nosso país não melhorou da noite para o dia, certo? Ou será que eu tenho que agradar os sonhadores de plantão? Teria que, para deixar a criançada crescida feliz, dizer que bastava trocar o presidente que o Brasil já foi reconstruído, ficou melhor do que nunca e basta esperarmos dezembro para o nosso país ganhar o passaporte econômico de "país desenvolvido".
Na verdade, alguns atos mostram o quanto a elite do bom atraso tomou as rédeas junto com a elite do atraso propriamente dita. Na verdade, a elite do bom atraso, a "boa" sociedade, a "classe média de Zurique", festiva e identitária, como uma versão "Dr. Jekyll" para contrapor a sua congênere do modo "Mr. Hyde", também esteve incólume nesses tempos de Sérgio Moro, Eduardo Cunha, Michel Temer e Jair Bolsonaro, os "timoneiros" do mal que conduziram o inverno golpista de 2015-2022.
Nota-se que a parte reacionária da classe média abastada obteve seu protagonismo nesses períodos de 2015 até o auge da pandemia, em 2021. Mas a parte "boa" da elite do atraso nunca foi prejudicada no período golpista, antes se incomodando com governantes que, por um simples capricho de classe social, não lhes representava.
Temer e Bolsonaro não prejudicaram a elite do bom atraso a não ser em poucos aspectos, que nem de longe afetaram a boa vida dessa parcela da sociedade que reconquistou oficialmente o protagonismo no final do ano passado. Os dois desgovernantes não financiavam coletivos culturais e nem patrocinavam as festas da "boa" sociedade que acha que bebedeira de cerveja no domingo é artigo de primeira necessidade e que vê como único sinal de dever cívico o fanatismo pelo futebol.
A reação dessa "boa" sociedade a episódios como a Operação Lava Jato, as "pautas-bombas" de Eduardo Cunha (que foram as bases políticas dos governos de Temer e Bolsonaro), nunca foi de prejuízo. Não foi o "bacanão" do Baixo Gávea que curte sua boemia semanal na Lapa carioca que perdeu uma profissão de caráter técnico para vender balas em sinaleiras, por causa dos desmandos de Sérgio Moro e seu estranho cúmplice Deltan Dallagnol (juiz e procurador que demonstraram ser politicamente promíscuos).
Não foi o burguesão festivo do Corredor da Vitória, em Salvador, que diante dos retrocessos do governo Temer, continuados depois por Bolsonaro, que perdeu seu conforto e teve que vender apartamento e seu carrão SUV e ter que se mudar para Paripe viver num barraco disponível.
A "boa" sociedade apenas não se identificava com o projeto político dos nefastos presidentes desse período. Se sentia incomodada, sim, com Temer e Bolsonaro, mas exageravam ao dizer que sofreram prejuízo. Antes essa elite do bom atraso não ampliou seus benefícios, mas ela continuava sempre vivendo na sua opulência, comprando comida a R$ 35 ou mais e jogando fora depois de uma cinco garfadas.
A forma com que essa elite pouco se empenhou pelos gritos de "Fora Temer" e "Fora Bolsonaro" coloca essa burguesia que se acha "a classe mais legal da humanidade planetária" numa posição que lembra a de criancinhas peraltas fazendo algazarra, sem levar a sério protestos contra esses presidentes de conduta claramente abusiva. Essa falta de empenho fez com que os dois completassem seus mandatos sem problemas, tendo sido a "revolta popular" feita em vão.
Trata-se de um estranho método da elite do bom atraso que tenta parecer "mais legal" que seus semelhantes do lado direitista. Nunca protestam de verdade, suas marchas nas ruas mais parecem micaretas, tudo é festa, desde as manifestações do "Fora Temer" e "Fora Bolsonaro" até a forma com que encaram a necessidade de reconstruir o Brasil.
A falta de conscientização política dessa "boa" sociedade, apesar dela se achar "esclarecida" e "muito inteligente", com seus diplomas obtidos nas faculdades privadas apadrinhadas por Fernando Henrique Cardoso - era patético ver universidades particulares evocarem os movimentos estudantis em suas propagandas, nos anos 1990 - , era evidente e é lamentável que seu narcisismo contamine o senso comum e comprometa seriamente a livre e ampla expressão do senso crítico.
Afinal, é essa elite festiva, que sem ter razão se acha dona dela, que pede para que só apelemos para a "democracia do sim", do "AI-SIMco", do "AMORdaçar", de todos estarem de acordo, dentro da lógica binária de achar que contestar e questionar alguma coisa é sinônimo de bolsonarismo.
O primeiro caminho para o atual protagonismo dessa elite festiva é a má vontade em protestar de verdade contra Temer e Bolsonaro. Se compararmos isso com os protestos de roteiristas, produtores e outros membros das equipes técnicas do cinema e TV dos EUA, com a atriz Fran Drescher, da sitcom The Nanny, desempenhando um papel de líder sindical que o presidente Lula hoje já não tem mais capacidade de exercer, é vergonhoso ver que a "boa" sociedade brasileira, quando protesta, é mais para fazer chacotas de Bolsonaro do que manifestar sua indignação.
Se esse pessoal vive só na festa, na brincadeira, na chacota, se fantasiando de jacaré e leite condensado em vez de manifestar sua indignação, é sinal de que o Brasil está sob o jugo de uma classe média abastada e festiva, uma elite cheia de dinheiro mas que se atreve a se achar mais povo que o povo. É uma elite que diz gostar muito de pobre, desde que o pobre cumpra seu papel social resignado, como nas novelas da TV. Pobre fechando rodovias e invadindo latifúndios não pode, mas pobre morando em favelas caindo em pedaços ou dormindo nas calçadas sujas, pode, né?
E não podemos criticar essa elite festiva que, além desses defeitos, ainda tem a ambição de dominar o mundo. Que tristeza...
Comentários
Postar um comentário