Sou de esquerda, mas não posso ficar complacente nem desejar uma esquerda qualquer nota só porque ela, em tese, conquistou o poder. O que vemos, nesses dez meses de governo Lula, é que o protagonismo artificial das esquerdas se deu mais pelas trilhas abertas pela democracia neoliberal do que pela natural tendência do esquerdismo voltar ao país.
O mundo está complexo e, justamente, a ironia bate na porta da elite do bom atraso com suas mensagens "subliminares". Um ataque sangrento em Israel atingiu uma rave brasileira chamada Universo Paralello (sic), um trocadilho com a realidade paralela que faz uma sociedade provinciana, cafona e atrasada como a brasileira de hoje - consequência de um culturalismo popularesco intensificado desde a ditadura militar - achar que está com tudo não só no Brasil como também no resto do mundo.
Com as esquerdas não diferindo muito, em agenda sociocultural, com a direita, ao menos a moderada - já que a extrema-direita, bolsonarista, se pauta pelo raivismo - , no sentido de apreciar os mesmos "brinquedos culturais" que transformam o Brasil numa versão real life da novela das nove, notamos que o nosso país nunca teve uma tradição de ser genuinamente esquerdista.
O governo Lula, nos dois primeiros mandatos, até foi bom e, de forma muito leve, lembrava o projeto abortado de João Goulart, anunciado no comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1964. Se bem que a sabotagem cultural, trazida pela intelectualidade pró-brega, impediu que se resgatassem os debates culturais do CPC da UNE e o engajamento cultural dos festivais de MPB, dos teatros de vanguarda e do Cinema Novo.
Dessa forma, as esquerdas preferiram tomar para si o culturalismo cafona e popularesco que a ditadura militar apoiava e era transmitido pela mídia hegemônica solidária aos generais. Era assustador ver esquerdistas vestindo a camisa de valores, ídolos e paradigmas que eram mais próprios de um culturalismo mais conservador daqueles que mais apoiavam os abusos do AI-5.
Com a defesa da bregalização, as esquerdas viram o poder lhe escapar das mãos, porque o pensamento crítico que as esquerdas se recusavam a exercer lhes foi roubado pela direita hidrófoba, e aí vimos no que deu: Operação Lava Jato, Eduardo Cunha, Movimento Brasil Livre (aka Movimento Me Livre do Brasil), Michel Temer, Jair Bolsonaro.
A defesa da bregalização e de outras instituições conservadoras - como, na religião, o Espiritismo brasileiro, que na prática é o Catolicismo medieval de botox - por parte das esquerdas fez elas caírem no papel de ridículo, mordendo a isca de apoiar fenômenos falsamente progressistas, que tratavam o povo pobre como animais de cativeiro, só exaltando o povo pobre quando este se contenta com sua inferioridade social e age com obediência ao status quo.
O golpismo de 2016 é fruto desses erros que as esquerdas não querem admitir e que, ultimamente, está cada vez pior, com muitos adeptos de Lula 3.0 boicotando textos com senso crítico e pedindo para ninguém criticar o presidente. Medo da volta do pesadelo bolsonarista e trauma das pregações raivosas da mídia lavajatista.
A elite do bom atraso é versão repaginada e convertida ao lulismo da recente elite do atraso que gritou "Fora Dilma", e descendente de uma linhagem que incluiu a Casa Grande escravocrata, a República Velha fisiológica e as elites religiosas que, rosários na mão, pediram a queda de João Goulart.
Agora todos vestem a máscara do "esquerdismo convicto", colocando no clube esquerdista nomes bastardos que vão de Xuxa Meneghel a Joe Biden, bastando qualquer neoliberal histérico fazer elogios entusiasmados ao Lula. Pura hipocrisia que faz a "boa" sociedade de hoje fugir de textos questionadores, mesmo que eles se baseiem em fatos, como é o caso deste blogue.
De repente as esquerdas cirandeiras passaram a dominar as narrativas. O conjunto da "boa" sociedade brasileira, composta dessas esquerdas festivas com os "isentos" ideológicos e não-hidrófobos, passou a ditar a "verdade" que gostariam de ver, fugindo de textos e livros desagradáveis. Literatura é apenas anestésica, sem um único compromisso com o Saber. Textos avulsos, de blogues, por exemplo, só aqueles que soam agradáveis.
Neste sentido, os lulistas gostam também de fake news, desde que completamente diferentes da cosmética da raiva do bolsolavajatismo. Temos que acreditar, por exemplo, que Joe Biden é o maior herdeiro político de Fidel Castro e Simon Bolívar nas Américas, se quisermos ter alguma lacração fácil na Internet. Já não foi o suficiente a pretensa guevarização do "funk", um subproduto de um Rio de Janeiro ressentido, precarizado e conservador, frustrado por não ser mais capital do Brasil?
As classes trabalhadoras foram abandonadas, os favelados deixados no descaso sorridente dos mestres e doutores que acham que a pobreza é "coisa linda de se ver" (desde que nossas festivas e "superbacanas" elites intelectuais não morem nas favelas, elas são "maravilhosas" vistas de longe) e camponeses e sem-tetos vivem a agonia de não serem ouvidos.
Afinal, as esquerdas foram sequestradas por uma classe média festiva que acha que "qualidade de vida" é curtir o fim de noite enchendo a cara de cerveja, e que monopoliza as narrativas nas redes sociais. Essa elite se acha a "dona da verdade" e, obtendo o protagonismo pleno através do lulismo de hoje, impõe seu pensamento e valores medíocres não só para o Brasil, mas agora para o mundo.
E isso é assustador, pois muitos desses valores são contaminados pelo culturalismo conservador mas desprovido de raivismo explícito da ditadura militar. As esquerdas, ao ter um modus operandi cultural da direita clássica dos tempos do general Médici, acabam se corrompendo e traindo seus princípios, daí ser compreensível que as pautas trabalhistas foram trocadas pelas pautas identitárias.
Com isso, vemos um mundo muito complicado para as esquerdas, e Lula mordeu a isca em vários momentos, se ostentando em viagens desnecessárias ao exterior, buscando se aproximar do Centrão e da frente ampla a ponto de sacrificar princípios e cometer erros sérios, e o nosso país apenas amenizando a crise anterior com um relativo controle de preços e uma esforçada estabilidade institucional.
Fora isso, vemos o quanto o Brasil se atrapalha no esquerdismo, a ponto dos próprios lulistas serem intolerantes a críticas, questionamentos, contestações. Que democracia é essa que defendem que evita o debate, a crítica, o protesto? O grande medo é o Brasil deixar esse cenário escapar de suas mãos e deixar o bolsonarismo voltar com apetite redobrado. Convém tomarmos muito cuidado.
Reconstruir o país depende, sim, de muita crítica, pois se está querendo varrer a sujeira acumulada de seis décadas. Recusar a admitir isso é entregar a chave do poder a Jair Bolsonaro e companhia.
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