Seria muito fácil apelar para maniqueísmo. De um lado, o lulismo, o Estado e o espiritualismo religioso. De outro, o bolsonarismo, o Mercado e o neopentecostalismo. Dependendo do ponto de vista, um é o mal, outro, o bem. Mas tudo isso é fruto de um Brasil que parece não sair de 1974.
A situação hoje está tão complicada que os assaltos estão retomando, aos poucos, o ritmo intenso que ocorria, desde o milagre brasileiro até o Plano Real. As elites não aprendem, nem mesmo os novos-ricos, pois se tratam de antigos pobres já remediados que, quando ganham a sorte grande sem necessidade, acabam tão gananciosos quanto os super-ricos e a alta burguesia.
Gente que se recusa a ajudar o próximo - lembrando que isso não se define com sacos de mantimentos distribuídos com frieza e pensando mais na promoção pessoal - , preferindo gastar com supérfluos enquanto quem perde dinheiro acumula dívidas e passa fome sem poder comprar comida. Gente que vê as portas e janelas do destino se fechando, enquanto os que estão bem na vida fazem coisas como beber cerveja demais e jogar comida fora.
Ontem, um assalto no Morumbi resultou num tiroteio que matou dois ladrões e o genro do médico acusado de crimes sexuais, Roger Abdelmassih. E são cada vez mais comuns os furtos de celulares e as revoltas da Cracolândia. Tudo porque existe uma multidão que não tem a quem recorrer e, acumulando adversidades, semeia o ódio e a revolta contra a miséria extrema que enlouquece terrivelmente quem está em situação de rua.
Quem trabalha também vê os infortúnios se acumularem. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, planeja privatizar a SABESP e os trens e metrôs ainda sob administração pública, o que pode dar em demissões. Mas não pense que o Tarcísio é só o único vilão da história.
Lula também está sendo criticado pelas viagens ao exterior, e sua viagem recente tem como destino o Oriente Médio. Lula abandonou o PT, abandonou o povo pobre - os "pobres" que Lula diz apoiar são os pobres remediados com perfil análogo ao das novelas e comédias da TV - , e atua como um grande pelego, sem uma atuação que garanta, com segurança, a satisfação das demandas populares.
O bolsonarismo que teve Tarcísio como um de seus produtos e o lulismo que aposta numa "democracia" que mais favorece empresários do que trabalhadores se tornam males que só satisfazem a elite do atraso, seja a propriamente dita, identificada com o bolsonarismo, seja a elite do bom atraso, esta metida a progressista.
Mas a elite do bom atraso é burguesa, por mais que aceite tomar aguardente vagabundo em botecos modestos de vez em quando. Ela finge esquerdismo enquanto manda seus filhos estudarem no exterior, lembrando muito o que os fidalgos do Brasil colonial fizeram com seus filhos diletos.
Essa elite é hipócrita defendendo da boca para fora o combate à fome, enquanto tem orgulho de jogar comida fora sem cerimônia e muito menos escrúpulos. Reclama dos congestionamentos mas elas é que contribuem comprando carros sem necessidade, e, para piorar, ainda aplaudem e apoiam os currais humanos chamados parklets, praças pseudo-públicas que são instaladas nos meios-fios das ruas, atrapalhando o tráfego e os estacionamentos.
As greves também envolvem professores, uma profissão que anda muito esquecida, que ensinam na rede pública estadual. Enfim, são pessoas que não vivem no mundinho cor-de-rosa da elite do bom atraso, que fingiu odiar Michel Temer e Jair Bolsonaro, mas sempre tiveram boa vida sob a sombra desses tenebrosos governantes.
Agora a elite do bom atraso não quer criticar o lulismo, e só critica cerimoniosamente o bolsonarismo que não mexeu nos seus privilégios quase nababescos. A elite dos que querem demais sem necessidade, dos que desperdiçam e consomem supérfluos, é que é o alvo de muitos protestos dos quais a greve unificada dos trabalhadores do Metrô, CPTM, SABESP e rede pública estadual de ensino são apenas uma pequena amostra localizada no Estado influente que é São Paulo.
Virão mais revoltas para o desespero da tal "sociedade do amor" que apenas usava o "amor" como desculpa para botar seu passado sombrio debaixo do tapete, agora se transformando numa burguesia "legal". Mas o "amor" da elite do bom atraso também pode ser uma condensação do verbo "amordaçar", pois a rejeição ao senso crítico é um meio de esconder os pecados da burguesia brasileira e condená-los ao esquecimento.
Para a elite do bom atraso, o ideal é que se chore lágrimas de crocodilo contra privatizações só para lacrar as redes sociais e, depois, todo mundo vai se divertir tomando cerveja em quantidades exorbitantes. Aliás, as redes sociais são a mídia da telefonia móvel, ou seja, o lazer da "boa" sociedade é fruto de um processo de privatizações ocorrido há cerca de 25 anos. E os lulistas gritando "viva o SUS" enquanto usam os serviços hospitalares da nata da iniciativa privada.
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