Não era o que desejávamos, como latino-americanos, mas vamos combinar que é uma consequência dolorosa para o retorno artificial das esquerdas após a retomada conservadora pós-2016. Javier Milei, com jeitão de cantor brega e projeto político extremo-direitista, venceu as eleições presidenciais da Argentina que, já com 97% das urnas apuradas na contagem dos votos de segundo turno, derrotando, com 55,76%, o candidato de centro-esquerda Sergio Massa, que obteve 44,23%.
Massa era candidato do atual presidente Alberto Fernandez, que tinha como vice a peronista Cristina Kirchner. Parecia a realização do sonho de volta das esquerdas ao poder, mas Fernandez, mais um neoliberal - numa relação invertida do que acontece no Brasil, quando Lula é o presidente e o neoliberal Geraldo Alckmin é que é o vice - , não conseguiu resolver a crise argentina causada pelo antecessor Maurício Macri, neoliberal que apoiou a campanha de Milei.
O desemprego aumentou atingindo 900 mil argentinos, segundo dados do segundo trimestre de 2023. 40,1% da população sucumbiu ou permaneceu na pobreza e, pouco antes das votações do segundo turno, a inflação atingiu 142,7% em relação ao ano anterior.
Milei adotou na sua campanha um discurso populista reacionário, mas travestido de "libertário", a partir do próprio nome de sua coligação partidária, La Libertad Avanza (A Liberdade Avança), reforçando o discurso ultraconservador que marcou os ventos reacionários do pós-2016, que fez os EUA elegerem Donald Trump, o Brasil encarar Michel Temer e Jair Bolsonaro e o Reino Unido optar pelo Brexit, ou seja, sua saída da União Europeia.
A vitória de Milei é um forte alerta para o Brasil, que costuma repetir o que ocorre no país vizinho. As esquerdas brasileiras tiveram um protagonismo artificial, obtido no colo da direita moderada, mais por aproveitar as brechas deixadas pelo Judiciário do que pela natural retomada do esquerdismo que já veio cheio de concessões à direita.
A decepção de Roberto Requião, ex-governador do Paraná, com o governo Lula é ilustrativa desse período em que vive o Brasil. Requião era do partido de Temer em 2016, e ele foi solidário com os parlamentares do PT, votando contra o golpe e protestando contra o "pacote de maldades" do temeroso presidente.
Hoje, porém, as pautas de Temer apenas foram suavizadas, e o projeto progressista de Lula saiu muito mais ameno e fraco do que no primeiro mandato, quando o petista era acusado de repetir o projeto político do antecessor Fernando Henrique Cardoso.
Lula começou o terceiro mandato brincando. Sua campanha não teve programa de governo. Seu atual mandato começou sem uma ação imediata de reconstrução do Brasil, levando meses para lançar alguma medida para o povo brasileiro, e, quando lançou, eram medidas paliativas.
Mas Lula priorizou o que poderia ser adiado: a política externa. Ele poderia ter adiado as viagens ao exterior, e ficado no Brasil para cuidar dos brasileiros. Em vez disso, Lula foi se arriscar para se intrometer em assuntos alheios, como os conflitos de Israel contra o povo palestino e os da Rússia contra Ucrânia. Convidado a ser mero observador-ouvinte da reunião do G7, Lula se meteu a discursar por dez minutos e forjar um protagonismo sem necessidade.
Lula não governa para o povo pobre, que se sente abandonado pelo presidente. Sei que muita gente odeia ler isso, prefere fantasiar, sonhando no Brasil de contos de fadas, no qual Lula trabalha para os pobres até quando está tomando sol em Saint-Tropez ao lado da esposa Janja.
Na verdade, Lula governa, em seu mandato atual, para a classe média abastada, a elite do bom atraso que se mimetiza se disfarçando de pessoas comuns, se achando a classe social mais iluminada e legal do planeta, a ponto de esnobar europeus, inclusive britânicos e escandinavos. Os estadunidenses, é claro, são poupados pelo fã-clube do Lula 3.0, porque são eles que são o "paraíso", a "nação referência" que oferece as "matérias-primas" da "cultura transbrasileira" que prevalece aqui.
Lula não governa para o trabalhador que tem que dormir cedo para acordar de madrugada e ir ao trabalho pegando um transporte lotado que demora a aparecer, com uma mochila que, dentro dela, guarda uma marmita fria a servir de almoço. Lula governa para o bem de vida que passa a madrugada bebendo cerveja até cair, para o empregado vida mansa que no almoço compra um pratarrão de comida do qual boa parte é jogada fora no lixo, sem um pingo de escrúpulo.
O Brasil de Lula 3.0, o Brasil da fome dos pobres e de uma classe média que tem orgulho de jogar comida fora, é o país dessa classe dos bem de vida e de bem com a vida que apoiam as fortunas exorbitantes dos craques de futebol e querem que a cerveja seja incluída na cesta básica e o leite no imposto do pecado. Um país do faz-de-conta em que o único pobre que merece atenção é o pobre das comédias de TV e cinema, que desce os morros sambando e cantando.
Afinal, essa elite do bom atraso, que se acha "iluminada", tem costumes muito estranhos. Uma elite que, no plano religioso, é capaz de cultuar "médiuns" picaretas publicando suas frases horrorosas de moralismo religioso digno do século XII, tem orgulho de "não ter que comer toda a comida" e jogar boa parte dela no lixo, enquanto finge, nas redes sociais, que "pensa no povo pobre e faminto".
Hipócrita, essa elite também é seletiva no repúdio aos super-ricos, pois seu silêncio sepulcral poupa certos super-ricos: os empresários da cerveja e do futebol, os dirigentes "espíritas" que chegam aos "centros espíritas" (alguns com arquitetura luxuosa de fazer inveja à Igreja Universal) com seus carros SUV, morando em apartamentos caros à beira-mar e fazendo turismo pela Europa sob a desculpa de "levar a palavra de Jesus" para o Primeiro Mundo.
A elite do bom atraso é que foi o foco de Lula, que fingiu que "iria pensar em adotar políticas para a classe média", quando ele, na prática, não só já estava fazendo como estava priorizando até com certo exagero.
Lula abriu mão de políticas sociais, sacrificando o ministério do Esporte, minimizando a política salarial - salário mínimo de R$ 1.320 mais Bolsa-Família de R$ 705 são insuficientes para garantir qualidade de vida ao povo pobre - , consentindo com a privatização de rodovias e estatal no Paraná, comprando apoio de parlamentares para aprovação de medidas (corrupção?), e decepcionando aliados como o próprio Requião e o escritor Paulo Coelho.
O maior erro de Lula é também o de não dar ouvidos a conselhos, advertências nem críticas. O defeito maior de Lula é de agir sem pensar, só atendendo aos seus impulsos, como se só ele decidisse por tudo, na ilusão de uma suposta autossuficiência. Uma lulista deslumbrada alegou que Lula tem "percepção sobrenatural" maior do que o resto da espécie humana, mas essa ideia é uma grande idiotice.
Lula não é autossuficiente nem pode decidir sozinho. Não existe democracia de um homem só, em que um decide e os outros vão dormir tranquilos. Da mesma forma, na campanha presidencial de 2022, é impossível haver uma democracia de um candidato só, pois é legítimo que outros candidatos pudessem também se oferecer como alternativas contra o bolsonarismo. Ciro Gomes apanhou dos lulistas que agiram como valentões da escola.
Foi vergonhoso Lula fazer o papel da "democracia de cabresto" para o deleite dos tataranetos das oligarquias da República Velha, tataranetos agora convertidos na "esquerda festiva mais legal do mundo", dançando "funk", tomando cerveja adoidado e contando piadas sem graça em plena madrugada.
Daí que decidi, de maneira enérgica, não fazer o L. Não se pode transformar a democracia numa brincadeira. Não podemos viver no mundo do faz-de-conta. Lula virou pelego, está a serviço da elite do bom atraso, do empresariado da Faria Lima, dos mentores do golpe contra Dilma Rousseff que passaram a conta para Bolsonaro e Sérgio Moro pagarem, e foi um nojo ver Lula e Joe Biden se aliando para um projeto supostamente "a favor dos trabalhadores". E os lulistas não gostam quando se chama isso de peleguismo.
A trajetória de Lula pós-2020 foi um horror. Eu admirei Lula antes disso e agora o repudio, porque considero que ninguém é tão sagrado que não possa decepcionar quando comete erros terríveis. Por sorte as redes sociais são dominadas pela elite do bom atraso e os textos críticos contra Lula são os que menos repercutem.
Daí a pouca disposição do senso crítico, até pelo medo de expor o passado sombrio das elites que, em 1964, se ocupavam desejando a queda de João Goulart e não se importariam com o acidente de trabalho que arrancou um dedo do operário Luís Inácio da Silva. Mas hoje essa elite do dinheiro em excesso e da vida fácil demais está feliz quando o Lula de hoje é a mascote da Faria Lima e, por isso, ganha a admiração da burguesia, enquanto os antigos aliados se sentem traídos e abandonados.
É esse o cenário de um lulismo que parece ver a realidade fácil demais para seus apoiadores. Tudo parece fácil demais para Lula, como se ele tivesse o botão do destino em suas mãos. Mas a realidade não é assim e os lulistas se comportam como gente desprevenida e arrogante, achando que tudo está a favor deles, quando nem o protagonismo que eles obtiveram foi dado de bandeja, mas apenas por concessões casuais de um Supremo Tribunal Federal mais com medo da ascensão de Sérgio Moro do que com vontade de libertar Lula.
Fora das bolhas lulistas, bolhas que se acham julgadoras de tudo e de todos sem ter o mérito nem a competência para isso, pessoas passam fome, moradores de rua gritam de raiva falando sozinhos de tão enlouquecidos com as adversidades em excesso, pessoas acumulam dívidas e ainda não conseguem ganhar em loterias, sorteios ou promoções de produtos para obter o dinheiro que lhes salvaria das falências. Pessoas que sofrem à revelia da tal "sociedade do amor" que se revela tão egoísta e rancorosa quanto a "sociedade do ódio" bolsonarista.
A realidade é muito complexa e extremamente dura. Não podemos brincar com a realidade. Infelizmente os lulistas brincam e o grande medo é que uma surpresa terrível poderá botar todo o cenário de hoje a perder. A vitória de Javier Milei já soa como um alento para os bolsonaristas prepararem sua volta ao poder.
Com Lula priorizando as esquerdas festivas e identitárias e a classe média que só quer tomar cerveja e contar piadas de madrugada, perturbando a vizinhança que precisa dormir, e fazendo concessões para a direita moderada, seja com que nome for, como "frente ampla", "Centrão", "tucanato clássico" e "direita democrática", cria-se um pano de fundo para a extrema-direita criar sua máscara de "libertária", se inspirando no método de Milei.
A vitória do extremo-direitista argentino é, portanto, um fortíssimo e perigoso alerta para o Brasil, e enquanto Lula e seus seguidores continuarem brincando e investindo no jogo do faz-de-conta, o nosso país estará vulnerável a um retorno da extrema-direita, mesmo que seja sob um novo rosto a buscar um cargo presidencial para 2026. A arrogância e o triunfalismo dos lulistas não é garantia de salvação contra ameaça alguma. Convém ter mais cautela diante do imprevisível.
Comentários
Postar um comentário