O Brasil vive um momento tóxico, em que uma elite relativamente flexível, a elite do bom atraso - na verdade, a mesma elite do atraso ressignificada para o contexto "democrático" atual - , se acha dona de tudo, seja do mundo, da verdade, do povo pobre, do bom senso, do futuro, da espécie humana e até do dinheiro público para financiar seus trabalhos e liberar suas granas pessoais para a diversão.
Controlando as narrativas que têm que ser aceitas como a "verdade indiscutível", pouco importando os fatos e a realidade, essa elite brasileira que se acha "a espécie humana por excelência", a "classe social mais legal do planeta", se diz "defensora da liberdade e do humanismo" mas age como se fosse radicalmente contra isso.
Embora essa elite, hoje, se acha "tão democrática" que pretende reeleger Lula, de preferência, por dez vezes seguidas, pouco importando as restrições previstas pela Constituição Federal, sob o pretexto de que somente o petista irá garantir a democracia para os brasileiros, seu DNA golpista volta e meia vêm à tona, quando se trata de valores que mexem com a meritocracia ou com a visão de mundo adotada.
Em dado momento, essas pessoas rejeitam o pensamento crítico, que consideram uma frescura de intelectuais existencialistas europeus ou de distópicos sul-coreanos, poloneses e espanhóis. Em tese, se dizem favoráveis e amplamente abertos ao senso crítico, mas aparece aquele instinto Monark (o blogueiro, não a marca de bicicletas) e vem a reprovação, até um tanto enérgica, da compreensão crítica a certos fenômenos em evidência.
O bolsonarismo foi apenas a manifestação de um inconsciente coletivo que surtou e se tornou escancarado demais. Mas a elite do bom atraso achou positivo o período bolsonarista, pois pode botar na conta de Jair Bolsonaro, Sérgio Moro, Kim Kataguiri, Carla Zambelli, Silas Malafaia e outros todos os males da humanidade, poupando de tal responsabilidade gente até tão ou mais perversa e reacionária, mas blindada de acordo com interesses estratégicos.
Por exemplo, pouco importa se o "médium" tal é mais reacionário do que Silas Malafaia, a ponto de defender a ditadura militar como nem o Brilhante Ustra conseguiria defender, mas como o "médium" disfarça suas ideias medievais com o sabor de mel, há até gente nas esquerdas ou mesmo entre roqueiros e atrizes sensuais que passam muito pano nos erros do charlatão que simboliza o Espiritismo brasileiro, religião que simboliza o Brasil tóxico em que vivemos, pela positividade tóxica dessa seita e da personalidade ranzinza do dito "lápis de Deus".
Para quem não sabe, por trás da necessidade em todo mundo só aparecer sorrindo nos bate-papos "espíritas" na Internet, já em si uma boa amostra do positivismo tóxico dessa religião, há também o dogma dessa seita que, com base na Teologia do Sofrimento, a corrente mais radicalmente medieval do Catolicismo da Idade Média, a pessoa tem que aguentar feliz as piores adversidades, agradecendo a Deus pela desgraça obtida.
A positividade tóxica bloqueia o senso crítico, faz pessoas fugirem da realidade, preferindo ler textos agradáveis. O mercado literário é reflexo disso, pois a leitura de livros procura evitar o máximo a busca do verdadeiro Saber, do verdadeiro Conhecimento, palavras que, para muitos, têm a ideia deturpada de um engodo que mistura ocultismo, pseudo-ciência e o que houver de científico ou intelectual que se deixa passar nas páginas de entretenimento e curiosidades mais vistos na Internet.
A toxicidade, para o bem e para o mal, virou mania no Brasil. Não se fala do "tóxico" no sentido policial e criminal do termo, mas a forma viciada e doentia de encarar as coisas, para o bem e para o mal, e que faz do nosso país tão terrivelmente doente que a obsessão em conquistar o Primeiro Mundo se torna uma causa maior sem que nosso país tivesse as condições obsessivas para tanto e, queiram ou não queiram, estamos longe de atingir essa proeza, que não se dá somente por sucessos econômicos.
Temos desde a diversão tóxica de vizinhos gritando aos berros na madrugada, e ainda se achando na razão, fazendo chacota com quem quiser fazê-los calar, mesmo se até o próprio Jesus Cristo fosse essa pessoa. A obsessão tóxica em fazer festas barulhentas de madrugada, incomodando o sossego dos outros, é defendida por seus praticantes sob desculpas que parecem atrativas como "Eu quero viver, eu vou ser feliz!".
Fala-se da toxicidade do consumismo, dos "animais consumistas" que só querem dinheiro para satisfazer suas paixões tóxicas em comprar e consumir, que as faz deixarem de sentir os sabores dos alimentos, o prazer de um lugar visitado, a qualidade de um serviço ou produto. Consomem, de maneira voraz e selvagem e, portanto, tóxica, visando o prestígio público da marca e a obsessão, também tóxica, de se sentirem incluídos na sociedade, através do status quo da vida em grupo, precursora das lacrações da Internet, só que presenciais.
Há a conformidade tóxica para tudo. Sorvetes e almoços executivos caros? Claro, a "boa" sociedade que se acha "mais povo que o povo", fica tranquila. Falta aquele sabor diferenciado na nova sorveteria instalada no lugar de uma outra que fechou as portas? Para quem acha ótimo tomar até sorvete de jiló com chuchu, está sempre ótimo.
E o café da manhã dessas pessoas fica sempre ótimo, com aquele café de marca que não é café, mas uma mistura de cevada torrada com carvão e restos de tudo (chocolate em pó, pimenta do reino, chá, quinoa e até restos de barata e pó de madeira). O prestígio da marca já satisfaz o paladar da conformidade tóxica, que acha tudo certo até quando tudo está errado.
E aquela novela da vida real da falta de rodovia entre Rio do Ouro e Várzea das Moças, em Niterói? Moradores de São Pedro d'Aldeia, Cabo Frio, Arraial do Cabo e até Macaé, quando estão em Tribobó, reclamam que têm que reduzir velocidade quando passam pelo trecho niteroiense porque a RJ-106 atua como "avenida de bairro", o que causa até prejuízo para os mercados da Região dos Lagos.
Mas o niteroiense médio não liga para isso, sente um desprezo tóxico, uma conformidade doentia com o problema que se recusa até a conhecer. Em sua vidinha no apartamento de luxo de Icaraí, o niteroiense médio acha tudo bom desde que não enfrente congestionamentos no trânsito para a famosa cidade vizinha, o Rio de Janeiro, e desde que duas condições para sua felicidade medíocre se cumpram sempre: a vitória do Flamengo numa partida de futebol e a garantia de consumir, pelo menos, dois litros de cerveja por dia.
Tudo tóxico. Aliás, o próprio futebol é uma paixão tóxica, pois o fanático por futebol acha que o esporte é apoiado por 100% de brasileiros, e no Rio de Janeiro, quando um carioca médio conhece alguém, pergunta qual é o seu time antes de perguntar o nome da pessoa. Desconhecidos, sem conhecerem o outro, ficam papeando sobre o jogo de futebol de véspera. Quem não torce por futebol no Rio de Janeiro está sujeito até a assédio moral no trabalho e potenciais ameaças de perder o emprego.
Há a masculinidade tóxica associada a casos de violência contra a mulher. Mas a religiosidade tóxica, que com seu moralismo medieval prefere inverter as coisas, perdoando e amando o algoz e culpabilizando a vítima, uma verdadeira demonstração de misericórdia tóxica, acredita que a masculinidade tóxica só prejudica o tiozão do churrasco, o machista "boa praça" que não faz mal à sua mulher, mas a vê sempre na condição inferior da "rainha do lar", eufemismo para dublê de empregada doméstica para o marido.
Já no caso em que a masculinidade tóxica mexe no organismo do homem, com ele tomado de fúria cometendo feminicídios e, depois do crime, vivendo a bipolaridade emocional da raiva e da depressão, da arrogância e da vergonha, ninguém acredita que o feminicida possa abreviar sua vida pelos males psicológicos que podem gerar de câncer e infarto a acidentes de trânsito trágicos pelo nervosismo com o uso do volante.
Temos dois feminicidas idosos perto de morrer, o jornalista Pimenta Neves e o cantor Lindomar Castilho, o primeiro acumulando doenças gravíssimas aos 87 anos, o segundo, com 84 anos, integrante de um meio, a música brega, que já é uma galeria de mortos precoces, e ninguém percebe que os dois podem morrer a qualquer momento, sendo ambos tratados como se ainda fossem meninos saudáveis com um longo caminho para a frente. Puro surrealismo tóxico de acreditar que aqueles que matam, sobretudo os feminicidas, estão "proibidos de morrer", mesmo em idades já avançadas.
Aliás, se falamos em música brega, a toxicidade do brega-vintage é também um sintoma do Brasil tóxico em que vivemos. A positividade tóxica do É O Tchan é um típico caso de aplicação das ilusões das redes sociais na música popularesca, aquela obsessão doentia de perseguir a felicidade. Junto a isso, temos também a intoxicação de nossos ouvidos com "Evidências" na versão de Chitãozinho & Xororó e a música "Um Dia de Domingo", de Michael Sullivan e Paulo Massadas, que só expressam "beleza artística" para ouvidos bastante tóxicos que veem a realidade de maneira igualmente intoxicante.
Na música estrangeira, temos a subserviência ao hit-parade dos EUA que toca 200 vezes ao dia nas rádios de pop adulto, como trilha sonora para a vassalagem cultural do brasileiro médio. A "superioridade" de Michael Jackson e os estereótipos "roqueiros" do Guns N'Roses também simbolizam essa vassalagem, que de maneira bastante tóxica simbolizam o "mundo ideal" do qual os brasileiros médios sonham muito, não sem a toxicidade emocional dessa subserviência aos EUA.
E vemos o quanto esses sentimentos tóxicos se situam no Brasil em que até o governo Lula está incluso neste contexto de positividade tóxica, de ninguém reclamar nem questionar, pois há um convite doentio para a sensação doentia da conformidade tóxica, de aceitar tudo que está aí, achando que apenas forças divinas, das quais temos muitas dúvidas sobre sua existência ou forma de existência, poderão levar o Brasil ao Primeiro Mundo.
Mas aí lembremos daquela coisa na infância, de que se os meninos e meninas ficarem obedientes e submissos, Papai Noel irá dar brinquedinhos de presente. Essa obsessão tóxica em retomar a infância - que faz até com que "médiuns" charlatães sejam vistos como "fadas madrinhas" e adorados como "princesas da Disney" - também reflete essa intoxicação brasileira que no fundo remete a um modelo de país desenhado na ditadura militar e que, infelizmente, muitos lutam com muita força para manter.
E assim nunca saímos da Era Geisel, e tudo o que fizemos é apenas trocar um insosso velhinho de óculos pequenos e cara de paisagem por um velhinho barbudo e gordinho com trejeitos natalinos. No mais, parece que o ano de 1974 nunca terminou, apesar de terem passado cinquenta anos. Nada mais tóxico do que fazer o nosso futuro ser dependente e submisso a um passado desses.
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