ALAIN DELON EM 1959 E EM 2019.
A morte do ator francês Alain Delon deveria nos fazer pensar, até com mais delicadeza do que em relação ao falecimento de Sílvio Santos, pois Alain foi um símbolo de tempos grandiosos, embora tanto ator quanto apresentador tivessem sido personalidades em evidência há cerca de 65 anos.
Ao morrer, aos 88 anos, Alain passou por vários problemas pessoais. Perdeu a última esposa, Nathalie Delon, em 2021, vítima de câncer. O próprio ator francês sofreu um AVC em 2019. Estava brigado com um dos filhos, Anthony, que tinha comportamento agressivo e chamou o pai de senil. Anthony também estava em desavenças com a irmã, Anouschka, além de disputarem quem iria cuidar do pai.
Alain foi um dos maiores galãs franceses e europeus. Apesar da notável beleza, ele também tinha um grande talento e viveu a oportunidade de atuar em grandes e desafiantes produções do cinema europeu, tendo vivido os tempos da Nouvelle Vague francesa e do Neorealismo italiano. O nome do autor foi mencionado num verso de "Balada do Louco", dos Mutantes: "Se eles são bonitos / Sou Alain Delon / Se eles são famosos / Sou Napoleão / Mas louco é quem me diz / Que não é feliz...".
Ele foi um dos grandes astros do cinema da década de 1960, quando o cinema europeu, através das tendências citadas no parágrafo anterior, desafiava o ilusionismo comercial de Hollywood, propondo uma nova linguagem que, se não descartava a ficção e o sonho, as colocava a serviço de uma perspectiva mais realista e humanista do que o milionário cinema estadunidense.
Pena que a dicotomia entre o intelectualismo do cinema europeu contra a alienação de Hollywood não é percebida pelas gerações recentes e nem tão recentes assim, como a patota nascida entre 1978 e 1987 que, embora agora bem adulta e com filhos a criar, não tem uma visão de mundo consistente, até por essa geração não ter nascido nos tempos de grande vigor cultural no Brasil e no mundo.
Ver o pessoal engolir o canal TeleCine Cult vender o cinema comercial dos EUA como "alternativo" é uma barbaridade de fazer até budista surtar e sair correndo pelas ruas promovendo quebra-quebra. E vindo de gente grande, essa visão de puro terraplanismo cinematográfico só faz sentido para quem fica plantado no Instagram em vez de ver e, sobretudo, pensar e repensar o mundo afora de ontem, hoje e sempre.
Daí que pensamos nos últimos anos de Alain Delon, e nem pelos problemas pessoais profundos. Ele também estava amargurado com o declínio cultural dos tempos atuais, mesmo na França. E isso é uma dura lição para os brasileiros, pois se a França anda muito decadente hoje em dia, não é o Brasil, ainda mais deteriorado, que irá se tornar um país desenvolvido com um hipotético "socialismo de Primeiro Mundo" (sic).
O cinema mundial hoje está entregue a um comercialismo atroz. As exceções estão nos filmes independentes europeus que, hoje em dia, refletem temáticas distópicas. Dramas como Adeus Lênin e Parasita falam de fins de tempos, de decadências sociais, de fins das utopias que, antes, prometiam sinalizar um futuro melhor quando eram expressas nas décadas de 1950 e 1960.
Alain se sentia "solitário" ao ver que seus contemporâneos, em grande parte, faleceram, e que ele perdeu a oportunidade de, mesmo na velhice, fazer um cinema ao mesmo tempo crítico, vibrante, criativo e desafiador como na fase áurea de sua carreira. E esse declínio cultural é um reflexo do declínio social dos últimos 35 anos no mundo.
Vemos a França decadente, ameaçada de ser governada pela extrema-direita, que por pouco não chegou ao poder - já basta o que certo ditador austríaco fez da França em 1941, que foi durante algum tempo um Estado alemão - , e que vive uma crise sociocultural e econômica tão grande que são comuns os relatos de turistas sendo assaltados nas ruas de Paris.
Temos a Grécia, no passado o país-símbolo da Antiguidade clássica, sofrendo séria crise econômica e, recentemente, até um incêndio de grandes proporções. A Grã-Bretanha também vive uma crise à sua maneira, e os EUA também vivem uma crise, apesar de ainda ser capaz de expor, ainda, a já falsa imagem de país glamouroso, mesmo para os olhos dos lulistas tão orgulhosos de seu pretenso nacionalismo.
Aliás, é o Brasil o país mais decadente entre aqueles que, de certa forma, arriscam-se a ter algum destaque no mundo. Anteontem, Lula falou, ao fiscalizar o Concurso Nacional Unificado (CNU), espécie de "ENEM dos concursos públicos", que "a máquina pública (do Brasil) precisa chegar ao século 21". Se a nossa sociedade ainda não chegou ao século 20...
O "funk", por exemplo, apesar de toda a gourmetização da miséria que converteu a pobreza humana, de um problema social crônico para uma pretensa identidade sociocultural, devolveu as "periferias" para os padrões de inferioridade social anteriores ao urbanismo, audacioso mas socialmente excludente, do antigo prefeito carioca Pereira Passos, no começo do século 20. Se com ele o projeto já era excludente, imagine antes, quando o povo pobre mal havia saído do cativeiro escravocrata das senzalas.
Ver o "funk" retomando o espírito negacionista da "revolta da vacina", fazendo a juventude pobre virar refém de sua pobreza, com as favelas transformadas em "paisagens de consumo" enquanto seus moradores vivem seus dramas sociais de sempre, é uma amostra de como nosso Brasil está doente e tóxico, mesmo diante de um Carnaval identitarista que parece "democrático" e "diversificado".
A precarização cultural já existe no pop estadunidense coreografado e movido pelos truques do pleibeque e do excesso de sintetizadores, enquanto seus intérpretes, cantores sem personalidade artística apesar de serem "personalizados" como celebridades, transformam seu pop comercial numa "lavanderia temática", com letras "confessionais" que tentam mascarar o comercialismo escancaradamente explícito, mas sempre desmentido pelos idiotizados fãs.
Imagine então no Brasil, em que a bregalização chegou a ser gourmetizada por uma geração de intelectuais e que só eu, um jornalista solitário considerado um "patinho feio" da mídia alternativa, pude desmascarar jogando uma grande quantidade de textos para, ao menos, chamar a atenção do público através dos mecanismos de busca na Internet.
Pude eu denunciar a farsa do discurso do "combate ao preconceito" - para quem quer saber o pensamento da intelectualidade associada, ver Essa Elite Sem Preconceitos (Mas Muito Preconceituosa)... - , não sem enfrentar o desdém e até os ataques na Internet de gente que defende a precarização cultural, mesmo aqueles que se dizem "especializados" em cultura popular.
Os jovens de hoje andam infantilizados e obedientes ao mercado e à mídia. Visualmente até tentam imitar, com certa fidelidade vestuária e cosmética, os hippies de 1969-1970, mas carregam demais da alienação que já estava latente naqueles que entraram na onda do "poder da flor" sem ter um engajamento social, político e cultural relevantes.
E hoje nem a trilha sonora da "nação Woodstock" interessa para os "hippies de butique" que são tão tolos quanto crianças de 12 anos e riem histericamente por conta disso. Imagine trocar o rock de Jimi Hendrix e Doors pelo trap, ou trocar Janis Joplin por Xuxa Meneghel. Pois é.
Atualmente, no Brasil, vemos pessoas cegas, surdas e mudas, resignadas com os tempos atuais de consumismo hedonista essencialmente animalesco, sem a preocupação real com o humanismo. Há muita falsidade nas redes sociais e muita gente, é claro, espalha mentiras aqui e ali, do tipo "o Brasil vai alcançar o Primeiro Mundo, com a alegria do povo brasileiro e sua lição de fraternidade e paz que fará do país a maior nação mundial do planeta".
Mas por baixo dos panos, nosso país está deteriorado e Lula se reduziu a fazer apenas uma réplica do governo Ernesto Geisel com brechas para os pobres estereotipados pelas novelas da TV e a juventude identitária herdeira do antigo desbunde brega-tropicalista dos anos 1970. Mas nada que faça retomar o rumo certeiro que nosso país ameaçava efetivar no começo da década de 1960.
Por isso, o Brasil tenta empurrar com a barriga qualquer risco de melancolia em seu cenário sociocultural. Nosso país tenta se manter como um parque de diversões para uma parcela de "predestinados", o "clube de assinantes VIP" da "democracia de um homem só" de Lula 3.0.
Mas, fora dessa bolha, vemos dramas e tragédias sociais ocorrendo intensamente, e muita gente está fora desses festejos lulistas que chegam aos níveis da mais enjoada pieguice. Eu, que agora trabalho em telemarketing, ouvi de uma cliente uma indignação por estar morando não em casa, mas em um barraco, contrariando a imagem gourmetizada das favelas que ganhou até um "ciclo de debates", o "Favelas G20" (ou "como transformar as favelas em ambientes agradáveis", conforme a ótica burguesa).
Por isso a morte de Alain Delon, por incrível que pareça, fala muito mais ao Brasil do que a morte de Sílvio Santos, porque esta não prejudica a consolidação do culturalismo brega trazido pelo homem-sorriso. Alain faleceu depois que ele mesmo viu decair a cultura europeia que ele tanto viveu e amou, um cenário de vida humana, que, mesmo com paixões e erros, era mais vibrante do que o pragmatismo consumista-hedonista dos tempos atuais.
A cultura no Brasil está deteriorada e o que temos de grandes personalidades na nossa cultura é, em maioria, de gente com mais de 60 anos de idade. Não contam as tolices do trap, do piseiro, do "funk", do feminejo e nem mesmo dos idosos do brega-vintage - como É O Tchan, Michael Sullivan, Odair José e Chitãozinho & Xororó - , porque estes também simbolizam a deterioração cultural, embora sejam gourmetizados por conta de estarem mais tempo no mercado.
A situação é de fazer um tetraplégico mudo ter vontade de sair correndo pelas ruas gritando por socorro. Afinal, a cultura no Brasil está vivendo uma situação tão grave que não é botando mais verbas do Ministério da Cultura que irá melhorar as coisas. Melhorar, como? Dando dinheiro para funqueiros gastarem comprando carros importados, lanchas, jatinhos e mansões? Nosso país está muito doente, mesmo com essa felicidade tóxica que só agrada a uma elite.
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