O falecimento de Antônio Delfim Netto, economista e ex-ministro da Fazenda da ditadura militar, nos põe a pensar neste Brasil bastante complexo, que no último fim de semana viveu o luto de um trágico acidente aéreo que matou 62 ocupantes de um avião de passageiros da Voepass (antiga Passaredo) que ia de Cascavel para Guarulhos, mas caiu em Vinhedo, também no interior paulista. Não bastasse a ocorrência ser extremamente triste, os entes queridos têm que aturar a ação de golpistas financeiros se aproveitando do acontecimento para extorquir dinheiro.
Não está fácil o nosso país e, sob Lula, a situação está tão complicada que a popularidade do presidente brasileiro despenca a olhos vistos, mas é algo que os institutos Quaest e IPEC da vida dificilmente irão registrar com fidelidade em suas supostas pesquisas de opinião.
Delfim Netto foi o ministro que planejou o "milagre brasileiro" em 1967, embora seu projeto de desenvolvimento econômico subordinado seja, na verdade, uma continuação da fórmula lançada pela dupla de ministros do governo Castelo Branco, o ministro do Planejamento, Roberto Campos (avô do atual presidente do Banco Central, homônimo), e da Fazenda, Otávio Bulhões. A fórmula de desenvolvimento da dupla Campos e Bulhões, de introduzir matéria-prima obsoleta inspirou até o crescimento da música brega, esta fundamentada em requentar modismos obsoletos.
A morte de Delfim Netto, aos 96 anos de idade, se deu quando, ironicamente, o governo Lula se destaca por uma orientação neoliberal, uma realidade que os lulistas ou mesmo aqueles que se dizem "democráticos saudáveis", lamentavelmente, se recusam a aceitar. Essas pessoas cobram um jornalismo mais verdadeiro mas tudo o que esperam é ler contos de fadas e não informações que, muitas vezes, lhes soam desagradáveis.
O "milagre brasileiro" consiste num desenvolvimento econômico parcial. Indústria, comércio e serviços estimulados, mas dentro dos limites que, todavia, impeçam o Brasil de se emancipar politicamente. Também a "distribuição do bolo", conforme uma metáfora dada pelo próprio Delfim Netto, seria parcial, com a promessa apenas de que o crescimento do bolo acontecesse primeiro para depois ele ser distribuído, de preferência dando migalhas ou pequenas fatias para os pobres.
Delfim criou então as condições para a atual realidade econômica que temos, pois o "milagre brasileiro" acabou favorecendo uma elite que sempre apoiou a ditadura militar e atravessou incólume esses mais de 55 anos e que hoje é a classe média abastada, a burguesia enrustida que tenta jogar um véu para seu histórico ultraconservador, elitista e até genocida, se repaginando agora para forjar uma imagem "boazinha" que, da parte de alguns indivíduos, finge ser até de "esquerda".
Por isso é que a gente vê esse pessoal boicotando textos questionadores, porque ninguém pode saber o que foi feito nos verões passados. Expor o passado da burguesia que hoje se proclama "democrática", "moderninha" e "tudo de bom" soa desconfortável, daí hoje ser preferível que toda a imprensa hoje, mesmo a alternativa, prefira o clima de contos de fadas que o Jornal Nacional esbanjava nos tempos "milagrosos" daquela época.
Juntamente com o progresso econômico excludente, que além de acolher os ricaços propriamente ditos e a classe média abastada, selecionou uma parcela dos pobres que pôde ver a luz do Sol ao aceitar ficar nos quintais do sistema, do status quo e da meritocracia social, veio a deterioração sociocultural que virou o "novo normal", de forma que não se pode criticar sequer a decadência de nossa cultura musical.
Hoje o Brasil sofre os reflexos do "milagre" e do AI-5, agora ressignificados na forma "benevolente" do AI-SIMco, pois o que havia de senso crítico antes passou a ser visto como "problemático", e atribuído, de maneira bastante preconceituosa, às supostas frescuras atribuídas ao existencialismo distópico europeu. Para todo efeito, todos somos convidados a estar de acordo com o establishment, sob o risco de sermos cancelados pelo desprezo social que fede a um resíduo golpista restante em corações ditos democratas de hoje.
Delfim Netto foi o último sobrevivente dos políticos que estiveram na reunião de 13 de dezembro de 1968, que discutiu o AI-5, implantado naquele mesmo dia. O economista não se arrependeu de ter participado da reunião que decidiu pelo endurecimento da ditadura militar, mas, com o tempo, se concentrou nas décadas seguintes, até o fim de suas atividades vitais, para o ofício da Economia, sem mais um vínculo político formal.
Nas últimas décadas, Delfim tornou-se amigo e orientador econômico de Lula, nos dois primeiros mandatos do presidente brasileiro. E, apesar de ter sido ministro da ditadura militar, até que a presença de Delfim Netto no time de colunistas da revista Carta Capital, conhecido periódico de esquerda, não me causava incômodo algum, por um motivo muito simples: Delfim ficava na sua, analisando a Economia, sem soar um direitista enrustido nem um fingidor de esquerda. Ele estava na dele, na sua especialidade.
Neste sentido, incomodava mais a presença de Pedro Alexandre Sanches na mídia de esquerda, porque este contaminou as editorias culturais com os preconceitos "sem preconceitos" que havia trazido da Folha de São Paulo. Da mesma forma que incomoda, na Bahia, um Mário Kertèsz, também oriundo da ditadura militar, mas bem mais ambicioso e canastrão no seu pretenso esquerdismo, que às vezes vive seus quinze minutos de fama nacional quando entrevista Lula na visita deste a Salvador.
Incomoda também quando esquerdistas acolhem como da causa um suposto "médium" de Minas Gerais que nunca foi esquerdista, mas, pelo contrário, foi um dos direitistas mais radicais a ponto de colaborar com a ditadura que defendeu abertamente num programa de TV e receber homenagem da Escola Superior de Guerra.
Soa vergonhosa e constrangedora a atitude tomada da "síndrome de Estocolmo" que faz os esquerdistas, só porque viram o "médium" passando a cabeça ou carregando no colo criancinhas negras e pobres, o definirem como "progressista" e até "marxista" (?!), pelo jeito viajando na mais delirante alucinação religiosa, que deveria ser imprópria para as esquerdas.
Este é o Brasil complexo que vive a pandemia do egoísmo humano que contamina a "boa" sociedade com a alergia ao senso crítico, tomada pela neurótica obsessão pela felicidade tóxica e pela liberdade abusiva do consumismo.
E Delfim Netto nos deixa quando Lula tenta esconder sua crise de popularidade com eventuais relatórios e supostas pesquisas de opinião, enquanto o país chora pelas vítimas da tragédia aérea da Voepass e vive a apreensão da enfermidade do apresentador Sílvio Santos, internado há vários dias em um hospital em São Paulo. Nosso Brasil está difícil, mas tem gente que ainda prefere fugir de blogues questionadores e livros informativos, na ilusão de buscarem contos de fadas para gente grande.
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