Um artigo de Carta Capital derruba o mito da "periferia legal" que ainda prevalece no imaginário dominante do país. Um imaginário que contraditoriamente permite separar uma visão fantasiosa da favela nos suplementos culturais e uma visão realista que aparece nas ruas.
Escrito por José Cícero da Silva, "Amor Cego: I love favela", desmitifica a visão positivista e um tanto deslumbrada das favelas, vistas como "arquitetura pós-moderna" e objetos de um ufanismo tolo, de um "orgulho de ser pobre" que os pobres simplesmente se envergonhariam de terem que sentir, diante dos problemas que enfrentam no dia a dia.
Em primeiro momento, filmes e documentários começaram a abordar a realidade das favelas, analisando a questão da violência, os problemas educacionais, a falta de saneamento, higiene e energia elétrica, os abusos de poder dos policiais, o narcotráfico e a exclusão habitacional que força a construção improvisada dessas casas.
José Cícero reclama que a mídia criou uma "favela para gringo ver". Reclama de mentiras que foram transformadas em verdades para gerar o fantasioso e atrativo mundo das favelas, ideologicamente promovidas como "paisagens de consumo" de uma classe média embasbacada. Um trecho do texto é uma crítica contundente não só à mídia quanto à intelectualidade:
"Quem gosta de favela é cientista social, antropólogo e polícia. Quem mora nela, tem a meta de sair. Não se trata de negar de onde o indivíduo veio ou vive, mas, sim, de buscar qualidade de vida. É importante frisar que as favelas surgiram e tomaram forma por conta da ausência de politicas públicas de habitação, isto é, ela simplesmente não deveria existir".
O que admira nessa situação é que a visão deslumbrada não se limita às novelas da Rede Globo nem a programas de entretenimento que evocam uma "periferia legal". Mesmo dentro da mídia esquerdista, pregações ideológicas neste sentido eram publicadas escancaradamente na Caros Amigos, na revista Fórum ou mesmo na própria Carta Capital.
Mais uma vez a chamada intelectualidade "bacana", "sem preconceitos" mas bastante preconceituosa, é que espalhou essa visão deslumbrada das favelas, desse ufanismo da pobreza que cheira a hipocrisia, vinda de cientistas sociais, jornalistas culturais e até mesmo ativistas e músicos, gente de classe média que pensava que entendia mais de povo pobre do que o próprio povo pobre.
Mesmo a realidade crua das favelas era narrada quase que num tom de conto de fadas. Assim como o conto da Branca de Neve tem a bruxa malvada, a "favela de fantasia" do "funk carioca" tem a violência, criando um maniqueísmo entre polícia e favelados, sendo da parte daquela o símbolo de um intervencionismo político que prejudica o "paraíso" da favela do reino da fantasia.
Mesmo documentários e monografias chegaram a ser produzidos com o intuito de dar suporte "científico" a essa visão fantasiosa. E ela se interrelaciona com o poder midiático, com a Folha de São Paulo e a Rede Globo que produziram o mito da "periferia legal" e foram os primeiros veículos da mídia a criarem um mito "socializante" do "funk carioca".
A Globo que inventou Fernando Collor é a mesma que inventou a APAFUNK (Associação de Amigos e Profissionais do Funk). E inventou uma visão de "periferia legal", de "brega provocativo" ou "pós-modernidade do brega" que intelectuais que fingem odiar a Globo, a Veja e a Folha seguem com a serenidade cordeira. A Folha de São Paulo inventou a intelectualidade pró-brega.
José Cícero acrescenta que as favelas possuem uma péssima estrutura urbana, com escadas longas e desengonçadas, dificuldade de acesso para deficientes, e uma rotina caótica em que qualquer um realiza poluição sonora sem que alguém pudesse reclamar contra isso.
As favelas deveriam merecer uma atenção que não seja a da discriminação aristocrática nem a adoração paternalista que, mesmo tida como "desprovida de preconceitos", também mostra sua visão cruelmente elitista de desejar que o povo fique preso nas favelas, porque elas são "o paraíso".
O povo das favelas merece atenção e respeito. Não merece ser tratado como se fossem um bando de bandidos ou animais selvagens, como também não merece ser tratado como atrações do circo da breguice sorridente dos intelectuais festivos. Eles merecem ser ouvidos e melhor compreendidos.
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