Não fui para a Bienal do Livro 2019 e não irei, não por repúdio a esse evento.
Há vários fatores que me impelem a essa decisão, apesar de eu precisar divulgar meus livros.
Um é que o evento, pra valer, acontece de noite, no Rio Centro, Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Moro em Niterói e, por incrível que pareça, ir à Bienal não é tão perto e nem tão seguro como se pensa.
Ainda mais quando a Linha Amarela e a Grajaú-Jacarepaguá, dois dos principais acessos ao Rio Centro, são lugares muito perigosos durante a noite.
Não sou louco de voltar tarde da noite, com alto risco de tiroteios violentos.
Por outro lado, ando decepcionado com o mercado literário, mais voltado para o espetáculo e o consumismo.
O Conhecimento fica em segundo plano. Quando muito, o Saber só serve como obrigação para as provas do ENEM ou para concursos públicos. Ou quando o autor tem muita, muita visibilidade.
Menos mal foi que a onda dos "livros para colorir" passou, até porque, para pegar uma ilustração sem cor e pintar em cima, basta a Internet e a impressão caseira à escolha do usuário.
Mas, por outro lado, temos obras que servem mais para entretenimento do que para esclarecimento.
E isso sem falar de uma famosa editora "espírita" que vende gato por lebre, oferecendo literatura fake como se fosse "obras do além-túmulo".
"Escritores" e "pessoas comuns" já falecidos que "pensam igualzinho" os ditos "médiuns", em obras terrivelmente medíocres e profundamente piegas, desperdícios literários que, se fossem jogados no lixo, ainda nos faria sentir pena das lixeiras que carregam essas obras infelizes.
Mas são "mensagens cristãs", não é? Vale tudo, quando se trata de propagandismo religioso, ainda que usurpe, de maneira vergonhosa, a memória dos mortos, que são desrespeitados e usurpados a bel prazer.
Poucas coisas de impacto ocorrem, e um episódio envolvendo causas identitárias repercutiu de forma bastante válida.
A obra Vingadores, a Cruzada das Crianças, lançada em 2017 pelos autores Allan Heinberg e Jim Chang, chamou a atenção por conta de um beijo homossexual entre dois personagens masculinos.
Isso indignou o prefeito do Rio de Janeiro e "bispo" da Igreja Universal, Marcelo Crivella, que ameaçou recolher livros de conteúdo mais ousado da Bienal do Livro.
Mas, ontem à noite, o desembargador da 5a. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio, Heleno Pereira Nunes, concedeu liminar proibindo o recolhimento desses livros.
A liberdade de expressão é muito válida e temas assim estão no contexto da expressão artística dos escritores.
O que não é possível é uma editora religiosa, com a mesma sigla da Força Expedicionária Brasileira, vir com livros fake em que se usa os nomes dos mortos ao bel prazer, só para fazer propaganda religiosa.
Também a liberdade religiosa, por mais válida que seja, não pode permitir que se use um morto para fazer propaganda religiosa, ainda mais com linguagem aquém do seu talento.
Quer dizer, se eu tiver uma "casa espírita", um projeto assistencial chinfrim mas uma boa reputação social, posso me passar pela Fernanda Young e lançar um livro parodiando a linguagem dela e jogar "mensagens cristãs" dentro?
E como ficarei se, para salvar minha pele, monto uma "reunião espírita", uma "caravana da fraternidade" para ostentar uma mera doação de mantimentos e roupas, e enganar o meu xará Alexandre Machado fazendo um falsete imitando a falecida mulher dele?
Se eu fosse popular, tudo isso me seria válido, sob o pretexto das liberdades da fé e da expressão? Posso me passar por um morto, em nome "do pão, do remédio e do abrigo dos necessitados"?
Eu, pessoalmente, nunca faria uma coisa abjeta dessas, um mascaramento religioso irresponsável para usar nomes falecidos visando promover sensacionalismo e lucrar com falsas controvérsias.
É por isso que o nosso Brasil ainda está problemático. Se muitos brasileiros ainda não entendem o que é democracia, se atrevendo a eleger Jair Bolsonaro, quanto mais entender a paranormalidade?
Pessoas que mal entendem o que é Brasil e o que é cultura brasileira são ainda mais incapazes de compreender o que realmente é o além-túmulo, onde não faz sentido um espírito "subir" e seu talento "descer", conforme citou o grande Leo Gilson Ribeiro, membro-fundador de Caros Amigos.
Os fakes do além são mais ofensivos, pela apropriação da identidade dos mortos, do que as narrativas ousadas que inquietam a "boa sociedade" nas feiras literárias.
Condeno a retirada de livros de qualquer natureza. Mas seria melhor que o bom senso das pessoas evitasse a literatura fake supostamente espiritualista, para o bem da Razão e pela memória dos que não estão mais entre nós.
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