A menina Agatha Félix, de apenas oito anos, é mais uma pessoa simpática, honesta e cheia de sonhos que se somou às vítimas da violência.
É mais uma pessoa realmente de bem que se soma aos centenas de assassinados pela violência de supostos tiroteios em ações policiais.
Segundo os familiares, não havia confronto entre PMs e criminosos. O motorista de uma kombi concordou com a declaração da família.
Os policiais teriam atirado a esmo, com as balas atingindo qualquer um que estivesse à frente.
E aí foi que Agatha, assim como outras crianças em outros casos, teve sua vida abreviada sem necessidade.
É menos uma criança, filha, amiga, estudante e cheia de projetos de vida, vários deles ainda guardados no seu inconsciente, por causa dessa violência sem fim.
Essa tragédia, na qual outras sete pessoas morreram com Agatha, em mais uma sessão de fuzilamento de pobres, só teve um detalhe que quebrou a rotina.
Agora esta é uma violência oficializada, institucionalizada pelo governador fluminense Wilson Witzel, que é do tipo "pobres, dão licença para as balas de metralhadoras e fuzis passarem".
Infelizmente, temos que responsabilizar o pragmatismo carioca que, desde os anos 1990, está derrubando o Rio de Janeiro, antes uma "cidade-modelo" para o país.
A onda de provincianismo que se deu com esse pragmatismo, no qual cariocas e demais fluminenses passaram a aceitar os retrocessos enquanto mantinham seu narcisismo.
Nessa combinação maluca do sado-masoquismo sócio-cultural, político e econômico, uma parcela reacionária da sociedade fluminense impôs retrocessos como se fossem "novidades", e os reaças impuseram isso sob ameaça de represália.
Quem discordasse disso era zoado nas redes sociais da Internet e era "presenteado" por um blogue de puro conteúdo difamatório e ofensivo de arrancar os cabelos de careca.
Era o AI-5 do pragmatismo carioca, que revela o espírito de intolerância e de minimalismo.
Era, por um lado, uma reação de revolta contra a antiga grandeza que o Rio de Janeiro tentou construir em 1958 e que tentou resistir por duas décadas após perder o título de capital do Brasil.
Daí que, se antes havia Bossa Nova, Garota de Ipanema, Fluminense FM, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, hoje temos "funk", mulheres-frutas ou "garotas da banheira", Rádio Cidade e as bobagens vistas no WhatsApp.
Se antes os lotações se transformavam em empresas com identidade visual própria, recentemente as empresas se uniformizaram em uma pintura padronizada que confundia a todos.
Se não fosse o idealismo do falecido engenheiro Fernando MacDowell, continuaríamos com os ônibus "podrenizados" de pintura igualzinha que o movimento estudantil tinha medo de combater.
Ficava a impressão de que os membros do Movimento Passe Livre preferiam pagar duas passagens com tarifa baixa do que pagar uma, ainda que alta, devido ao ônibus errado que corriam o risco de pegar sob a padronização visual e ao limite temporal do Bilhete Único com o tráfego intenso.
E todo mundo também aceitando clones do Emílio Surita "domados" pelos textos sobre rock que leem na programação da canastrona Rádio Cidade, que ouvem enquanto sonham com Solange Gomes, que devem considerar o suprassumo do feminismo popular carioca.
O Rio de Janeiro pós-1990 gerou um pessoal ao mesmo tempo autoritário e submisso. Submisso ao poder dos governantes, da mídia venal, do mercado, do empresariado. Autoritário contra quem puder discordar do "senso comum" do pessoal mais reacionário.
E isso com cidades sujas, carro de lixo fedorento, muita gente fumando, e gente tão fanática pelo futebol carioca que grita no final da noite, aos berros, perturbando o sono da gente trabalhadora.
É esse Rio de Janeiro que elegeu Eduardo Cunha, a raiz do golpe político de 2016. Foi ele que criou as condições para tirar Dilma Rousseff do poder e implantar os retrocessos políticos que estão acabando com o Brasil.
É certo que houve a onda de retrocessos culturais do Rio de Janeiro que, nos anos 1990, se paulistanizou para acolher o brega e viver sua degradação sócio-cultural que institucionalizou a mentalidade pragmática que arrasa com seus próprios apoiadores.
É certo que houve a onda populista-olímpica do PMDB carioca que pegou carona em Lula nos projetos de eventos esportivos no Rio de Janeiro, que fez Eduardo Paes cometer a atrocidade de padronizar os ônibus.
Ônibus ficavam iguaizinhos, Rádio Cidade fingia ser roqueira (e seus ouvintes, "gente bonita" do Leblon, Barra e Recreio, se sentiam os Hell's Angels com isso) mas a vida dos cariocas não melhorava.
As favelas não eram substituídas por conjuntos habitacionais decentes, e policiais invadiam as comunidades para atirar a esmo, como se brincassem de tiro ao alvo com armas de verdade.
E aí vemos a carnificina de sempre, agora temperada com a pragmática eleição de políticos fascistas nos últimos anos.
O pragmatismo aqui era o moralismo, a suposta austeridade, a pretensa disciplina.
As esquerdas médias ainda imaginam, no seu pensamento desejoso, que o Rio de Janeiro sempre foi e continua sendo um reduto de progressismo revolucionário.
Infelizmente, o Rio virou uma região ultraconservadora. O povo pobre ficava à margem das decisões públicas, cada vez mais voltadas a interesses pessoais num neocoronelismo antes inimaginável.
Como o moleiro do conto de Oscar Wilde, que recebia do jardineiro as mais belas flores para lhe presentear com um carrinho de mão estragado, as elites cariocas roubavam do povo pobre o samba e em troca lhe deram o Frankenstein da mídia venal chamado "funk".
O "funk" era uma colcha de retalhos que incluiu formas caricaturais de expressão popular desenvolvidas desde a fase decadente da TV Tupi até os delírios popularescos da Rede Globo, passando pelo populismo conservador do SBT.
E aí o "funk", no discurso da intelligentzia que cooptava as esquerdas, foi imposto como se fosse um brinquedo. A intelectualidade "bacana" queria que o povo pobre brincasse de ativismo "descendo até o chão".
Com isso, o povo pobre não podia lutar de verdade. Nada da reforma urbana da desfavelização, os pobres que se virassem para melhorar de vida.
E eis que, quando escrevo esse texto, mais duas pessoas foram atingidas por tiros da polícia em Cidade de Deus. Um suposto traficante e um trabalhador que ia para um culto evangélico. O primeiro morreu e o segundo está ferido.
E Agatha foi enterrada, sob protestos, no Cemitério em Inhaúma.
Até quando essa tragédia vai acontecer? Quando ela se voltar aos sociopatas que patrulhavam a Internet para forçar o apoio aos retrocessos, sob pena de quem discordar ser humilhado nas redes sociais?
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