GRANDES CONTINGENTES DE HOMENS MIGRAM DAS CIDADES DO INTERIOR BAIANO PARA SALVADOR, PARA FUGIR DA OPRESSÃO CORONELISTA. NA FOTO, UM PAU-DE-ARARA NO MOMENTO EM QUE PEGA A CONTRAMÃO PARA ULTRAPASSAR OUTRO VEÍCULO.
Antes de escrever este artigo, cabe alguns esclarecimentos, como o fato de admirar a mulher baiana, reconhecer sua qualidade e suas virtudes, assim como a importância das baianas famosas e, também, das lutas feministas na Bahia, principalmente na capital.
Tudo isso é indiscutível, mas ressalto, com base em observações dos meus 18 anos vivendo em Salvador, que infelizmente a maioria feminina da população não é uma realidade, apesar da longa persistência dos dados estatísticos registrados pelo IBGE desde os anos 1970.
A questão em relação aos dados oficiais, conforme descrevemos, remete a uma disparidade com o contexto da realidade estadual baiana e os dados oficiais, o que põem em xeque o mito de Salvador como “cidade-mulher”. Alguns pontos devem ser considerados.
Em primeiro lugar, é o grande êxodo rural que, no Censo de 1960, já apontou maioria masculina na população soteropolitana. Depois do golpe de 1964, o êxodo rural aumentou por dois motivos, sendo um deles a modernização excludente da economia agrícola no interior baiano e a violência no campo ordenada pelos coronéis dessa região que apoiaram o regime ditatorial e aumentaram seu poder nas cidades interioranas, estas entregues ao atraso, presas em padrões de vida do século 19.
O coronelismo, seja no interior da Bahia ou no Triângulo Mineiro - que sustenta o Espiritismo brasileiro - não devem ter seu poder subestimado nem serem vistos como redutos de generosidade dos grandes proprietários de terras. A tirania existe nesses locais e muitos camponeses buscam fugir desses lugares, ameaçados pela miséria e pela violência. Daí, no caso da Bahia, uma grande quantidade de homens migrar para Salvador e se tornar uma maioria “invisível” na população soteropolitana.
Com isso, não há como ser politicamente correto e recusar a admitir que contingentes gigantescos de homens migram do interior para a capital, o que significa que, praticamente, uma Bahia inteira de homens migra para Salvador. Mulheres também migram, mas são em quantidade menor e, geralmente, são acompanhadas de familiares.
O problema é que a grande quantidade de homens vivendo em Salvador não são registrados como moradores da cidade. São em maioria negros, índios e mestiços, jogados à miséria e à vida precária nas favelas. Não bastassem a dificuldade de obter emprego e de conviver com a violência ao lado de casa, esses homens ainda não têm direito sequer de serem meros números estatísticos, atribuídos às codades de origem.
O mais risível desse mito da “cidade-mulher” de Salvador é a “sociologia de boteco” que as matérias da imprensa fazem para justificar a “maioria feminina”. Com uma narrativa supostamente feminista mas com sutis alegações de padrões estéticos e de racismo, a falácia de que “falta homem em Salvador” é muito usada pelas mulheres entrevistadas nas boates durante a noite. Usar a noitada como suposta prova de dados estatísticos é constrangedor.
Por trás desse “inocente” discurso, se ignoram situações como o fato de muitos homens terem que dormir cedo para enfrentar uma jornada de trabalho, não raro pedado e precário, no dia seguinte. Além disso, a “falta de homens” é uma elipse, que esconde o adjetivo “atraentes” para classificar os homens. É uma elipse similar a da expressão “a gente bebe” em relação à bebida alcoólica.
Há um sutil racismo por trás dessa “animada” argumentação. Isso porque os homens são maioria na população soteropolitana, mas eles não são registrados como vivendo na cidade, e eles, por sua aparência de feições indígenas e africanas com traços rudes e rurais, “não” existem como homens, pois na vida noturna eles não correspondem aos padrões apolíneos exigidos pelo lazer etílico e festivo.
A mudança do Censo de 1970 para cá em relação ao de 1960 - que apontava maioria masculina na capital da Bahia - foi um artifício da ditadura em promover o turismo sexual associado à paisagem tropical, tomando como inspiração a adaptação do livro de Jorge Amado, Gabriela Cravo e Canela em uma minissérie da Rede Globo.
O turismo sexial seria uma medida sutilmente inserida nas políticas do turismo da ditadura militar, sobretudo na Bahia de Antônio Carlos Magalhães. Apesar do vínculo ditatorial, a medida prevaleceu até hoje e o mito de “cidade-mulher” de Salvador ganhou contornos politicamente corretos.
O truque para “esconder” os homens da população de Salvador é atribuí-los às regiões de origem, mesmo que eles estejam por definitivo morando na capital baiana. Dessa maneira, eles seguem “invisíveis” na população. Em contrapartida, até travestis, ainda estruturados biologicamente como homens, contribuíram para o suposto crescimento da “maioria feminina” em Salvador.
Mas a realidade dos fatos desafia os dados oficiais. Uma grande quantidade de homens se vê sobretudo na ida e volta do trabalho e, também, nos transportes públicos superlotados, num cotidiano que não tem a ver com a visão idealizada de paisagens tropicais e sensualidade feminina, uma fantasia que há décadas se impõe como “verdade absoluta”.
Paciência. Tudo isso pude comprovar pelos fatos. Nem tudo é como se deseja na vida, e seria lindo um cenário completo de clima tropical, paisagem praiana e mulheres lindas e sensuais tomando banho de mar. Mas nem sempre tudo pode ser como aquilo que sonhamos e idealizamos.
Com todo e máximo respeito às mulheres baianas, ao seu respeito, à sua luta, à sua personalidade, cultura e beleza, eu tove que ver nos próprios olhos o grande número de homens que povoa Salvador, apesar de invisíveis nas boates e nos escritórios estatísticos. Isso porque, com o vazio de quase todo o interior baiano, os homens vão viver na capital na busca, muitas vezes vã, de uma vida melhor.
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