O grande erro de boa parte das esquerdas de nosso país é que culturalmente elas mantém muitos paradigmas de esquerda.
Aos poucos ela começa a superar, mas isso teve o preço da perda do protagonismo político.
Imaginamos quantos paradigmas tiveram que ser abandonados no meio do caminho diante de tantas e tantas derrotas.
Como na Copa do Mundo de 2018, que está perto do fim, em que a Seleção Brasileira de Futebol foi derrotada, derrubando ilusões bastante surreais.
Muitos achavam que o craque Neymar, que apoiou Aécio Neves em 2014, tinha a chave para tirar Lula da cadeia e que a tarefa estaria certa com a conquista do hexacampeonato.
As ilusões das esquerdas diante de paradigmas conservadores, que envolvem cultura, futebol e religião, se baseiam sobretudo em duas fantasias.
Uma é o falso cheiro de pobre que tais paradigmas trazem, como se isso não pudesse expressar abordagens preconceituosas, caricaturais ou depreciativas das classes populares.
Neste caso, o povo pobre sofre uma analogia aos animais domésticos, nas quais não se percebe a diferença entre os que vivem na natureza ou os que vivem em cativeiro.
Outro é a visão ufanista na qual uma posição de aparente destaque do Brasil fosse garantir, por si só, prosperidade e emancipação social do povo brasileiro.
O falso cheiro de pobre e a paixão ufanista são duas ilusões que podem esconder armadilhas. Mas as esquerdas se esquecem disso.
Recentemente, tivemos uma desilusão e uma ilusão que ilustram bem esses problemas.
Vamos a uma ilusão. Um comentarista de esquerda, ligado a um portal de mídia alternativa em ascensão, foi defender, na boa-fé, um suposto médium espírita muito, muito conhecido.
Esquece o conceituado comentarista que o suposto médium defendeu a ditadura militar e foi um entusiasmado defensor de uma corrente medieval do Catolicismo, a Teologia do Sofrimento.
Essa teologia é uma espécie de AI-5 religioso ou "holocausto do bem": apela para os sofredores aguentarem calados as piores desgraças, sem reclamar nem sentir raiva ou tristeza, sob o pretexto de que, na velhice ou na morte, as graças divinas lhes cheguem.
O tal pseudomédium (infelizmente uma aparente unanimidade como ídolo religioso) esculhambou João Goulart e os movimentos sociais, mas pedia para orarmos em favor dos generais porque eles estavam "trabalhando em favor" do Brasil.
Um sujeito desses é visto com complacência pelas forças progressistas, porque sua imagem de ídolo religioso e pretenso símbolo de caridade - à maneira dos quadros do Caldeirão do Huck - foi muito bem construída.
O sujeito começou vergonhoso fazendo pastiches literários e sua "filantropia", embora exaltada por milhares de pessoas, era risível, porque se fazia um estardalhaço com as tais "caravanas do amor" só para doar umas poucas coisas.
Era uma "caridade" que quase nada resolvia e só trazia promoção pessoal ao "humilde benfeitor".
É uma armação que se repete com os "Lata Velha" da vida, e ilude as pessoas, fazendo com que seja bem-sucedida a armação da mídia hegemônica em fabricar pretensos filantropos.
Nos acostumamos com mentiras e retrocessos que duram décadas porque o jeitinho brasileiro e a memória curta, aliados à desinformação e conformismo coletivos, permitem que tudo cresça e se estabilize sem muita resistência.
Quando há resistência, ela é neutralizada e, com o tempo, se dissolve, e o que era uma oposição justa se reduz a mero "mimimi" contra uma farsa que se consolidou como pretensa unanimidade.
O tal ídolo religioso teve sua reputação construída com o apoio da mídia, sobretudo emissoras de TV, como a Tupi e, mais recentemente, a Globo.
Toda uma narrativa que o constrói feito um "filantropo de novela" envolve paradigmas conservadores de devoção, humildade e amor ao próximo, cujos valores são muito discutíveis.
Usando o nome de Humberto de Campos - armação que rendeu até processo judicial, mas a Justiça seletiva lhe garantiu impunidade, dada pelos "ancestrais" de Sérgio Moro, adorado pelos espíritas brasileiros - , o suposto médium prometeu que o Brasil seria "coração do mundo".
A ideia, associada à condição de "pátria do Evangelho", soa atraente, mas é traiçoeira: pressupõe um cruzamento de imperialismo com teocracia que remete a dois momentos históricos de trágica lembrança, o Império Romano e o Catolicismo medieval, a serem revividos pela "linda causa".
Esses valores têm sentido na Idade Média, e observamos o quanto o Brasil continua medieval, tanto no que se refere à liberação ou repressão de valores.
No esporte, até parece que o Brasil vê o nascer do calcio storico, o embrião do moderno futebol que surgiu na Idade Média.
Na cultura, a carnavalização da pobreza com o "funk" remete a impulsos comportamentais libertinos do período medieval.
Na religião, temos o Espiritismo no Brasil que, de maneira explícita porém nunca assumida, se distanciou do Espiritismo francês e se aproxima cada vez mais do Catolicismo medieval.
A pretexto de se achar que tudo isso irá transformar o Brasil numa potência futurista, endeusando funqueiros e "médiuns espíritas" e supervalorizando o futebol (que seria melhor se fosse visto como mero lazer e não como "guerra pacífica"), se esquece de um grande problema.
É justamente essa complacência que faz as causas progressistas botarem tudo a perder.
E o mais incrível é que esses três entes - futebol, "funk" e o Espiritismo feito no Brasil - possuem a blindagem das Organizações Globo, algo que é ignorado pelas esquerdas médias.
Estas, movidas pelo pensamento desejoso, ingenuamente preferem (e insistem em) acreditar que esses três entes só aparecem na Globo porque eles a ela recorrem por enfrentamento ou visibilidade e ela recorre a eles por apropriação e oportunismo.
Mas essas relações pressuporiam conflito, o que não existe na prática. E quantos palestrantes do Espiritismo brasileiro fizeram altos elogios à Rede Globo, expressando a mais aberta cumplicidade.
As forças progressistas não podem sucumbir ao pensamento desejoso, vendo a realidade não como é, mas como gostariam que fossem.
Ninguém é dono de seus ídolos, a ponto de julgá-los conforme as vontades e desejos dos admiradores.
As forças progressistas de esquerda muito menos podem se julgar "donas" dos referenciais que elas tomaram emprestado via mídia hegemônica, sejam os "médiuns" e funqueiros que povoam o imaginário "popular" tramado pelos Marinho, Frias e Civita.
Querer se apropriar de referenciais de origem conservadora, que se passam por "progressistas", pelo falso cheiro de pobreza e pela suposta promessa de emancipação ufanista que mostram, pode soar uma atitude bastante perigosa.
Muitos usam esses paradigmas acreditando que eles irão libertar Lula e levá-lo de volta ao Planalto. Mas a raiz conservadora desses valores podem fazer o Brasil sucumbir ao fascismo, com um conhecido reacionário no poder. Devemos tomar cuidado.
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