"Eu não quero ler isso. É real, mas não me agrada". O negacionismo factual, um elemento preocupante da cultura do cancelamento, é a reação daquele que vive numa positividade tóxica, que não quer saber de fatos, quando a fantasia é que mais lhe agrada e a pessoa prefere fazer papel de trouxa se aquele que o explora tem prestígio e visibilidade.
Sim, a cultura do cancelamento é mais do que boicotar quem adota uma atitude "diferente" ou "negativa" em relação à orientação dominante de um grupo de pessoas. No Brasil de Lula 3.0, temos uma estranha "democracia" em que o debate é proibido, pois a ideia é apenas festejar, rir e brincar, estando de acordo com as circunstâncias, por mais surreais, injustas e degradantes que fossem.
Antes eram os "tribunais de Internet", sobretudo comandados por proto-fascistas digitais, sobretudo no fim dos anos 1990 e no decorrer dos anos 2000 e na primeira metade da década de 2010. Mas eles se tornaram tão visados negativamente e, depois da ação solidária dos linchadores virtuais, os parceiros de outrora, depois de derrubar um "inimigo" comum, passavam a criar tretas entre si.
Nos tempos do Orkut, houve até a onda dos "marx-cartistas", direitistas que se autoproclamavam "de esquerda", fingiam odiar o imperialismo e George W. Bush e bajulavam Ernesto Che Guevara. Diziam apoiar Lula e Dilma, mas, além dos linchamentos digitais contra quem discordava do "estabelecido", levantavam bandeiras estranhas ao pensamento progressista, como o porte de armas e a violência em crianças.
Depois desses "tribunais" - na prática o "Supremo Tribunal do Umbigo" da intolerância social - , vieram os fascistas assumidos do bolsonarismo, que saíram do armário de quem "odeia acordar cedo" e fazia o teatro virtual do "bom esquerdismo" para lacrar no Orkut e Facebook. Falsos esquerdistas que, aos poucos, expressavam sua "decepção" com o PT - que então fazia bons governos, embora longe de serem revolucionários - e montavam uma narrativa gradual que resultou nas campanhas golpistas de 2016.
Com os estragos de 2016, os pseudo-esquerdistas retornaram ao armário, mas sem o "tribunal de Internet" de outrora, até porque a parcela bolsonarista da "galera que odeia acordar cedo" não voltou para a turma, expurgada pela sociedade politicamente correta de hoje. Ninguém quer pagar pelos estragos do Oito de Janeiro, não é mesmo?
Só que agora é o negacionismo factual. O fato pode representar uma realidade verídica, fidedigna, mas se a descrição desse fato num blogue desagrada o leitor, ele se afasta dessa página, passa a boicotar, sob a desculpa de achar o conteúdo "demasiado negativo". Esquece ele que não são os blogues contestadores que são "negativos demais", a realidade é que é excessivamente tóxica para ser dissimulada pelas piadas sobre vidas pessoais que fazem a preferência da "galera irada" de hoje.
E o negacionismo factual não é um fenômeno exclusivamente bolsonarista, mas também da sociedade que se diz "democrática" e "defensora do amor". Algumas pautas que noto um claro boicote desse público são observadas, na medida em que elas agem contra o hedonismo e a submissão às instituições dessa sociedade de classe média abastada, amiga da burguesia:
1) O consumo regular e apaixonado de cervejas e cigarros;
2) O hábito de jogar comida fora depois de umas poucas garfadas;
3) A existência de parquiletes (parklets), grotescas estruturas que atrapalham o tráfego e o estacionamento de veículos nas ruas das cidades e causam poluição visual;
4) A perigosa dicotomia da "raiva" e da "alegria" da polarização ideológica, que em nada resolve quanto aos problemas complexos de nossa sociedade;
5) As análises que apontam que o governo Lula está a serviço da burguesia e não das classes populares;
6) O eterno problema da "avenida de bairro" de Niterói, "invisível" aos próprios niteroienses, quando Rio do Ouro e Várzea das Moças, sem uma rodovia própria de ligação, dependem de uma rodovia estadual, a RJ-106, cujo tráfego atrapalha quem vai e vem de cidades distantes da Região dos Lagos;
7) O caráter fajuto da taxação dos super-ricos do governo Lula;
8) A mentira de que Uberaba, reduto de criação do gado zebu (espécie bovina mais cara do mundo), seria uma das "quatro cidades mais baratas do Brasil", mesmo tendo, entre outras coisas mais caras, uma passagem de ônibus municipal com preço superior a Rio de Janeiro e São Paulo.
Essas pautas são "garantia" de boicote e indiferença criminosa, de gente que sonega informação, porque não quer saber daquilo que desagrada e que, mesmo quando os problemas prejudiquem muita gente, isso não afeta a realidade solipsista dos que estão bem de vida e preferem ver os vídeos engraçados ou de mensagens piegas no Instagram (esses vídeos são chamados de reels).
Muito desse cancelamento e desse negacionismo factual se deve porque a parcela mais influente da sociedade, a elite do bom atraso - a "frente ampla" que pretende "substituir" o povo brasileiro e inclui ex-pobres tornados novos-ricos, a pequena burguesia, a burguesia descolada e os famosos muito ricos - , está vivendo seu momento de protagonismo no Brasil e não quer ser contrariada no sistema de valores que desenvolve nos últimos 30 anos.
Se essa elite está com a faca e o queijo nas mãos e, para farinha pouca, elas querem sua farofa primeiro, então não se pode fazer como no Primeiro Mundo, onde o questionamento crítico é socialmente estimulado e não teme derrubar totens antes inabaláveis, ou seja, fenômenos e ídolos da moda que, de repente, são "arruinados" pela repercussão das análises de um intelectual renomado.
Essa classe social que se proclama "sociedade do amor", uma aliança que destaca a burguesia descolada de hoje e as esquerdas identitárias, sempre manteve seus privilégios em contextos que, da forma que conhecemos, remetem ao período do "milagre brasileiro". A burguesia de chinelos não quer largar o osso, por isso não aceita questionamentos.
Essa "boa" sociedade prefere uma "democracia do sim", onde todos têm que estar de acordo com tudo, pois a nossa burguesia é tida como "socialmente responsável", com seus empresários e executivos brincando de ser "filósofos" em palestras da Faria Lima. Pôr em xeque as diretrizes dos que, supostamente, "mais pensam por nós e pelo Brasil", faz o internauta em busca de "boas notícias" boicotar o texto que simplesmente não lhe agrada.
Daí percebemos o quanto essa "democracia" pós-2022 não é diferente da "democracia" dos primórdios da ditadura entre 1964 e 1968. No fundo é uma "democracia" para poucos, sempre os privilegiados do dinheiro e dos bens supérfluos. Essa classe diz que "os tempos são outros", pedem "união pela democracia", mas seu negacionismo factual, que move a cultura do cancelamento brasileira, mostra que o DNA golpista ainda ferve e circula pelos sangues dessa burguesia bronzeada.
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